

Por Wallace Cardozo, Rede Galápagos, Salvador (BA)
O ensino da música na educação básica é obrigatório em todo o Brasil desde o dia 18 de agosto de 2008, de acordo com a Lei nº 11.769. Quase 15 anos depois, não é possível dizer que a legislação garante a oferta do conteúdo nas escolas do país, sobretudo nas cidades pequenas. “Apesar da lei, não existia o ensino da música no nosso município. O projeto surgiu para ocupar essa lacuna”, relata Érica Moraes, coordenadora-geral do Minha Primeira Opção — Educação: Instrumento que Transforma, projeto ao qual se referiu.
A iniciativa é uma realização do Centro de Desenvolvimento Integral em Lagoa de Itaenga (Cedili), uma das organizações selecionadas pelo Edital FIA (Fundos da Infâncias e da Adolescência), organizado pelo Itaú Social. O edital está apoiando 73 iniciativas que realizam ações de garantia do direito à educação, de promoção da vida e saúde, como combate à fome ou de manutenção da saúde mental, e de prevenção da violação de direitos. Os projetos apoiados devem ser executados ao longo do ano de 2023.
O pequeno município de Lagoa do Itaenga, no Pernambuco, fica a cerca de 70 quilômetros do Recife. A escassez de oportunidades e a curta distância até a capital fazem com que muitos dos moradores optem por estudar ou trabalhar em outras cidades. O contexto local é de grande vulnerabilidade. Dados obtidos pelo Cedili apontam que, dos pouco mais de 21 mil habitantes, cerca de 14 mil estão inscritos no Cadastro Único, sistema de dados da União para o cadastramento de famílias de baixa renda em programas sociais.
O Cedili foi fundado em 2007, fruto de uma atividade do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) que tinha a proposta de atender meninas em situação de gravidez precoce por meio da oferta de proteção básica e orientação. Desde então, a organização desenvolveu projetos para públicos de todas as faixas etárias, com foco em crianças e adolescentes e nos territórios com altos índices de vulnerabilidade.
“Até o ano passado, as crianças estudavam pela manhã ou à tarde e não tinham nada para fazer no turno oposto”, conta Érica. A organização entendeu que a ausência de atividades no contraturno escolar contribuía para situações de vulnerabilidade. O projeto foi pensado para atender a pelo menos 150 crianças, com idades entre 7 e 12 anos.
As crianças beneficiadas pela iniciativa terão um ano inteiro de acesso à iniciação à música, enquanto suas famílias passarão por momentos de sensibilização sobre cidadania e direitos da criança e do adolescente. Ao todo, são atendidas diretamente três comunidades de Lagoa do Itaenga, divididas em três turmas.

Os instrumentos musicais foram adquiridos recentemente e começaram a chegar no início do mês de maio, para a alegria das crianças. “Percebemos que estão se sentindo acolhidas. A música é só um gancho. Pode ser que dali saia um maestro ou um instrumentista, mas o que queremos é que tenham acesso a algo novo, que ainda não tinham no município”, explica Érica.
Neste primeiro momento, os oficineiros estão fazendo uma espécie de triagem para entender a aptidão musical de cada aluno. “Na primeira semana, eles conheceram os instrumentos. Os instrutores tocaram e depois deixaram as crianças tocarem. Estão muito animadas.”
A música faz parte do currículo obrigatório da educação básica porque comprovadamente traz benefícios aos estudantes. Em artigo publicado na Revista Educação Pública, os pesquisadores em educação Francisco Junior e Licia Fernandes afirmam que a música “contribui para o desenvolvimento psicomotor, socioafetivo, cognitivo e linguístico, além de ser um recurso facilitador na aprendizagem”. A oferta da atividade musical no contraturno soluciona, ainda, outro desafio. De acordo com Érica, as famílias “falaram muito sobre a questão de os meninos e meninas ficarem o tempo todo mexendo no celular, ou mesmo sem fazer nada em casa”.
Durante as quatro horas semanais em que participam das atividades, as crianças têm direito a almoço e lanche. A situação de vulnerabilidade, às vezes, se evidencia em momentos como esse. “Tudo é como uma novidade. Na primeira semana, por exemplo, o almoço foi estrogonofe, arroz e batata palha. Alguns deles nem acreditaram que iriam comer aquilo.” No que depender do engajamento das crianças, o projeto já é um sucesso. A coordenadora conta que elas já queriam fazer uma apresentação musical no dia das mães, mesmo com poucas semanas de aulas. A solução foi ensaiar um coral em que os alunos cantam uma música e os oficineiros tocam os instrumentos.
Érica explica que, com a motivação das crianças, “há uma melhoria de qualidade no ensino e na aprendizagem, e isso se reflete no desempenho escolar”. Como o projeto ainda está em fase inicial de implementação, não é possível avaliar com dados esse impacto. Entretanto, as projeções são animadoras. “Temos recebido bons feedbacks das escolas e dos familiares. Alguns dizem que as crianças nem dormem no dia anterior, de tanta ansiedade. Preciso ficar falando para elas descansarem para ter energia”, brinca.
A iniciativa Minha Primeira Opção — Educação: Instrumento que Transforma atenderá os estudantes até o final de 2023. Ao longo do ano, estão previstas apresentações em datas como o dia dos pais, o dia da Independência e o Natal. Após o encerramento do projeto, todos os instrumentos musicais serão doados às três escolas participantes. “Isso amplia o repertório de ações para que a própria instituição de ensino dê continuidade às atividades educativas.”
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