

Por Livia Piccolo, Rede Galápagos, São Paulo
Para muitos estudantes brasileiros, ler e escrever são atividades consideradas difíceis, penosas e entediantes. A obrigatoriedade de ler clássicos da literatura brasileira, por exemplo, afasta boa parte dos alunos e alunas da literatura — em especial quando a experiência não vem acompanhada de uma mediação qualificada. E escrever, quase sempre, não é uma atividade encarada como algo que pode gerar prazer.
A pesquisadora e educadora argentina Delia Lerner, autora do livro Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário, investiga as razões por trás do desinteresse dos estudantes pela leitura e pela escrita. Lerner já assessorou órgãos governamentais em diversos países da América Latina (Brasil incluído) e na Espanha. Professora do Departamento de Ciências da Educação da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, na Argentina, ela tem experiência em escolas fundamentais e é consultora de diversos projetos.
Criando uma comunidade de leitores
A autora fala sobre a realidade de muitos países latino-americanos, e suas reflexões e proposições são pertinentes e fazem sentido no contexto do Brasil. Para ela, ensinar a ler e escrever é um desafio que transcende amplamente a alfabetização em sentido estrito. Segundo a autora, o desafio que muitas escolas enfrentam é incorporar todos os alunos à cultura do escrito, é conseguir que todos os seus ex-alunos cheguem a ser membros plenos da comunidade de leitores e escritores. Delia Lerner não usa a palavra “escritor” para se referir àquele que escreve profissionalmente e vende livros, mas sim para indivíduos capazes de integrar a escrita em sua vida de forma viva e vital. “O necessário é fazer da escola uma comunidade de leitores que recorrem aos textos buscando respostas para os problemas que necessitam resolver, tratando de encontrar informação para compreender melhor algum aspecto do mundo que é objeto de suas preocupações”, defende.
Formando praticantes da leitura e da escrita
A educadora acredita que a aprendizagem da leitura e da escrita, na escola, se dá de um modo que afasta os alunos e alunas dos propósitos que nós, leitores e escritores, perseguimos fora dela. Fora da escola, crianças, jovens e adultos usam a escrita, por exemplo, para estabelecer ou manter contato com alguém. É possível pensar em um e-mail para um amigo que mora em outra cidade ou nas inúmeras mensagens de trabalho que trocamos diariamente, seja por e-mail ou mesmo em aplicativos como WhatsApp e Telegram. Já no âmbito da leitura, os livros de ficção e não ficção servem para conhecer outro mundo possível e para pensar sobre o próprio a partir de uma nova perspectiva.
Se a função da instituição escolar é comunicar saberes e comportamentos culturais às novas gerações, a leitura e a escrita existem nela para serem ensinadas e aprendidas. Mas essa lógica, muitas vezes, faz com que a escola deixe de fora os usos e o sentido que a leitura e a escrita têm para além das paredes do seu edifício. Delia Lerner defende que é preciso abraçar os papéis que a escrita e a leitura cumprem na vida social. O desafio é formar praticantes da leitura e da escrita, e não apenas sujeitos que possam “decifrar” o sistema de escrita, sabendo reconhecer sílabas e palavras. Diante desse panorama, o que fazer para preservar na escola o sentido que a leitura e a escrita têm fora dela? A autora sugere alguns caminhos.
Expandindo as atividades
Em primeiro lugar, é preciso investigar a natureza das atividades realizadas em sala de aula. Muitas delas são mecânicas, como a leitura de textos em voz alta com o objetivo de avaliar os alunos ou então pedir que eles escrevam textos em pouco tempo, sem lhes dar a oportunidade de reflexão. Além disso, a ênfase no ensino do idioma, com suas regras, não pode tomar a dianteira. Segundo Lerner, “o possível é gerar condições didáticas que permitam pôr em cena — apesar das dificuldades e contando com elas — uma versão escolar da leitura e da escrita mais próxima da versão social (não escolar) dessas práticas”.
Na visão da autora, o trabalho por projeto é uma boa estratégia, pois permite que todos os integrantes da classe — e não só o professor — orientem suas ações para o cumprimento de uma finalidade compartilhada. Ela elenca possibilidades:
- Gravar alguns poemas para enviar a alunos de outra sala;
- Escrever um texto para criar um programa de rádio ou podcast;
- Preparar uma carta do leitor para protestar contra alguma violação dos direitos das crianças ou então em prol de uma causa importante para o grupo.
Delia Lerner diz que tanto na gravação dos poemas como na concepção do programa de rádio serão necessários alguns ensaios. Essa etapa do trabalho colocará os alunos para ler os textos em voz alta, substituindo a ação mecânica de ler textos frios escolhidos por terceiros pela leitura de textos que fazem mais sentido para eles, pois integram um projeto maior — e concreto — no qual os estudantes estão engajados. Já a sugestão da carta de protesto permite que os estudantes conversem sobre algo importante para o grupo e, a partir dessa troca, passem seus pensamentos e demandas para o papel. “A organização por projetos abre as portas da classe para uma nova relação entre o tempo e o saber”, pondera Lerner.
Sobre os problemas curriculares
Delia Lerner dedica várias páginas do seu livro para pensar a questão dos currículos. Segundo ela, elaborar documentos curriculares é um forte desafio porque, além das dificuldades envolvidas em todo trabalho didático, há a hierarquização dos saberes. “Elaborar documentos curriculares supõe, além disso, tomar decisões que afetarão muitas escolas. (…) Fazer propostas que se levarão à prática em instituições muito diversas apresenta problemas diferentes dos que se apresentam ao orientar o trabalho de uma escola ou de uma classe específica”, explica.
No Brasil, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) é destinado a avaliar e a disponibilizar obras didáticas, pedagógicas e literárias, entre outros materiais de apoio à prática educativa, de forma sistemática, regular e gratuita, às escolas públicas de educação básica das redes federal, estaduais, municipais e distrital e também às instituições de educação infantil comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o poder público. Os materiais distribuídos pelo MEC às escolas públicas de educação básica do país são escolhidos pelas escolas, desde que inscritos no PNLD e aprovados em avaliações pedagógicas coordenadas pelo Ministério da Educação, contando com a participação de comissão técnica específica, integrada por especialistas das diferentes áreas do conhecimento. Sendo assim, as escolas podem selecionar e tomar decisões acerca de quais serão os conteúdos que devem ser ensinados. Delia Lerner propõe uma reflexão sobre esse ponto: “Olhando de fora, a tarefa de selecionar conteúdos parece consistir simplesmente em escolher entre saberes preexistentes — já elaborados pelas diferentes ciências que se ocupam deles. Selecionar se reduziria então a definir critérios para decidir quais desses saberes serão ensinados”.
Em que se basear ao tomar essas decisões no caso da leitura e da escrita? A especialista diz que o grande propósito educativo do ensino da leitura e da escrita no curso da educação obrigatória é o de incorporar as crianças à comunidade de leitores e escritores; é o de formar os alunos como cidadãos da cultura escrita. Se esse é o propósito, então está claro que o objeto de ensino deve se definir tomando como referência fundamental as práticas sociais de leitura e escrita. “Sustentar isso é muito diferente de sustentar que o objeto de ensino é a língua escrita”, afirma Lerner.
Pensando no contexto do Brasil e seus inúmeros desafios, o pensamento de Lerner ecoa problemas enfrentados por diferentes professores, em todas as regiões do país. Será que um estudante de uma escola pública do Brasil, seja ela rural, indígena ou urbana, precisa ser avaliado em relação ao que é o pretérito mais-que-perfeito do português? É um saber que faz sentido para ele e seu contexto de vida? Colocar a língua como objeto de ensino ajuda verdadeiramente a formar cidadãos leitores? Delia Lerner defende que a ênfase deve ser dada às razões que levam as pessoas a ler e a escrever, e não aos aspectos técnicos da língua.
O professor é um leitor?
Outra contribuição do livro de Delia Lerner diz respeito ao papel do professor em sala de aula. Para a pesquisadora, ele deve assumir também o papel de leitor. Em geral, o professor tem a função de julgar a validade das interpretações feitas pelos alunos. O direito e a obrigação de ler, por sua vez, ficam com o aluno. Lerner propõe uma mudança de paradigma, dizendo que “para que a instituição escolar cumpra com sua missão de comunicar a leitura como prática social, parece imprescindível uma vez mais atenuar a linha divisória que separa as funções dos participantes na situação didática”. Ou seja, para comunicar às crianças os comportamentos que são típicos do leitor, é necessário que o professor os encarne em sala de aula, que proporcione a seus alunos a oportunidade de participar em atos de leitura que ele mesmo está realizando, que trave com eles uma relação “de leitor para leitor”. O professor deve interpretar, também, o texto trabalhado, deve falar o que sente em relação a ele, deve conectá-lo à sua visão de mundo. Pode, ainda, falar de um poema que o emocionou ou de uma notícia de jornal que o surpreendeu, entre muitas outras possibilidades.
É preciso tempo, paciência e muitas ideias
Delia Lerner conclui seu livro dizendo que a problemática apresentada pela formação do leitor, longe de ser específica de determinadas séries, é comum a toda a instituição escolar, extrapolando os anos dedicados à alfabetização. O desafio de dar sentido à leitura e à escrita tem uma dimensão institucional e, se essa dimensão é assumida, se a instituição se encarrega da análise do problema, se seus integrantes em conjunto elaboram e levam à prática projetos direcionados a enfrentá-lo, começa a se tornar possível encurtar a distância entre os propósitos e a realidade.
Publicada originalmente em 2001, a obra se mantém atual, útil e necessária. É um livro alimentado na ação e na reflexão, como destaca no prefácio a educadora Emilia Ferreiro (1936-2003). “Livro que eu recomendaria ler em grupo, porque é composto de textos que foram escritos para serem escutados por interlocutores com os quais Delia dialoga desde uma tensão permanente entre compreensão e incompreensão, já que esses interlocutores (reais ou potenciais) compartilham desejos, mas não necessariamente práticas e reflexões.”
Saiba mais
- Percurso Leitura e escrita, no Polo
- Guia para mediação de leitura
- A leitura gera conhecimento e autoconhecimento
- Podcast Leia com uma criança
- A leitura que traz um novo olhar
- Webinário “Palavramundo” — contribuições da literatura para a alfabetização e o letramento
- TINO FREITAS — “Quanto mais lemos, mais podemos criar coisas que não existem e melhorar nossa vida”
- ANTJE DAMM — “Filosofar com crianças é fazer perguntas sem dar respostas”