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Dez perguntas para

“A escola precisa preservar a singularidade de cada um”

A autora e educadora fala sobre a primeira infância, livros e a relação criativa de crianças e adultos com o mundo


Stela Barbiern
Artista, educadora, contadora de histórias, autora de Quero colo, título selecionado pelo programa Leia com uma criança

Stela Barbieri: “Gosto de pensar que há algo anárquico na experiência de um livro; não há um jeito correto ou único de se relacionar com ele. Há o jeito de cada um.” (Foto: Arquivo pessoal)

Por Livia Piccolo, Rede Galápagos, São Paulo

Como entender a arte como um lugar capaz de gerar novos contatos afetivos com o mundo e entre as pessoas? Como preservar na vida adulta o olhar curioso e cheio de interesse, tão presente nas crianças? Como entender as inúmeras possibilidades dos livros infantis e da experiência de leitura? Essas são algumas das perguntas que movem Stela Barbieri. A especialista tem uma sólida trajetória como educadora e autora. Interessada no diálogo entre as linguagens, nos encontros híbridos e na interação entre arte e educação, Stela Barbieri investiga a imagem, a escrita e as histórias.

Foi curadora do Educativo da Bienal de São Paulo por seis anos (três bienais e duas mostras especiais), diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake (2002-14) e conselheira da Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal. Foi criadora de currículos e assessora de artes de escolas de referência em São Paulo e outras cidades no Brasil. Barbieri é autora de livros de educação, arte e literatura, trabalho que se desdobra também na arte de contar histórias. Dirige o binåh espaço de arte, um ateliê vivo, com cursos, palestras, formações e assessorias, em São Paulo. 

NNotícias da Educação — Por que a primeira infância é um período tão importante da vida?

SStela Barbieri —  É o período em que a gente aprende mais. Uma vez o Miguel, um menino que estudou muitos anos aqui no binåh, disse que as crianças fazem muitas perguntas porque elas ainda sabem pouco do mundo. É claro que elas trazem uma bagagem oriunda dos seus afetos, da sua história; trazem a ancestralidade da família. Há uma história pregressa, mas a criança é muito ávida pelo mundo; seus sentidos estão todos mobilizados. Essa curiosidade leva a muitas indagações e desejos de troca com o que está à sua volta. É a fase da vida em que estamos mais disponíveis para os aprendizados, sem o pensamento e a atitude utilitários que vão se impondo ao longo dos anos.

NComo se dá essa curiosidade da criança pequena?

SEla desfruta o mundo e fica perplexa diante dos barulhos e de tudo o que acontece. O corpo da criança está integrado e vivo para tudo o que a mobiliza e chama sua atenção — pode ser um pedacinho de pano, um objeto da casa, um graveto de madeira. O corpo todo vibra em cada percepção. É uma fase de contato com as sutilezas, as nuances e as intensidades. É muito bonito esse jeito de conhecer as texturas todas, as asperezas, a rugosidade do mundo. Os vários sabores que existem: amargo, doce, azedo, adstringente. As crianças pequenas estão muito abertas para conhecer essa variedade que o nosso planeta apresenta. Coisas minúsculas a que às vezes a gente não dá muita bola, como uma pedrinha no chão, a criança olha cheia de interesse.

NO adulto vai perdendo esse olhar investigativo; o corpo vivo e presente vai endurecendo. Como retomar e inserir na rotina essa curiosidade e o prazer de estar vivo?

SIsso tudo mora na gente. A vida vivida quando éramos crianças está em nós. Mas eu sinto que na vida adulta há uma tendência a privilegiar a esfera mental, a cabeça, os conceitos e pensamentos. Os povos originários têm isso muito mais integrado. Como integramos a relação viva com o entorno na nossa vida diária? Como a gente se mobiliza para caminhar, para se deslocar, para poder nadar em algum lugar? Como colocar o corpo de forma mais ativa nos espaços em que vivemos? São perguntas que me movem. Com o passar dos anos, fui percebendo uma coisa bem interessante sobre corpo e emoção. Sempre que a gente sente alguma coisa, aparece um sinal em alguma parte do corpo. Tem gente que fica aflita e dá um aperto no peito. Outros sentem a aflição na coluna ou na barriga. Todos nós temos essa manifestação, essa expressão do corpo, e ela nem sempre é perceptível. Eu, por exemplo, quando sinto um mal-estar, percebo logo na barriga. O contato com o corpo se dá pelo movimento e também pela percepção: o que está nos abalando e incomodando? Como a gente lida com os ritmos? Os nossos e os das outras pessoas?

“Talvez seja nas pequenas coisas que a gente se reencontre num estado perceptivo e recreativo, num lugar da imaginação. O mundo está precisando que a gente funde novas atitudes e modos de se relacionar. Precisamos poder imaginar outras possibilidades.”

NComo se dá a convivência com os outros na primeira infância?

SAqui na binåh nós temos um curso para crianças pequenas chamado Birilimbau. Uma menina de seis anos, quando estávamos estudando os voos das libélulas, virou para uma amiga e disse: “Olha, vamos fazer assim: você olha para mim e eu vou voar do meu jeito. Depois você faz o seu voo. Aí você tenta combinar comigo e eu vou tentar combinar com você”. Achei uma maneira muito linda de falar sobre o improviso e o criar junto. No dia a dia precisamos improvisar inúmeras vezes. Se vivemos só no ritmo acelerado do mundo, isso pode ser muito violento pra nossa maneira de ser. Como a gente pode viver junto respeitando nosso próprio ritmo?

Experiência com diferentes materiais realizada por Stela Barbieri. Foto: Arquivo pessoal

NVocê acha que o adulto é mais desrespeitoso com os ritmos do corpo?

SÀs vezes estamos agitados, às vezes mais calmos. Sinto que quando a gente é criança a linguagem do corpo é mais clara; o corpo fala “Estou com fome, com sede, com sono”. A criança se manifesta de acordo com o que está sentindo. Mas com o adulto é diferente: às vezes queremos ir ao banheiro, mas não vamos porque estamos em uma reunião. Alguns aspectos da educação formal nos afastam dessa percepção do corpo e dos nossos ritmos. Eu tenho pensado muito na imagem das montanhas. Somos como montanhas, cheias de mistério por dentro… Você está olhando para mim e não sei exatamente o que está pensando, e vice-versa. Não sabemos direito como nossa barriga está funcionando, nosso coração está batendo, o sangue fluindo; tem muitas coisas acontecendo dentro de nós. 

Um tanto do mundo é mistério; podemos até estudar e nos aprofundar, mas o mistério sempre existirá. Então eu fico pensando que nós, adultos, precisamos de um reencontro com esses mistérios. Quem nunca sentiu a necessidade de às vezes ficar parado como uma pedra? Ou de fluir como a água? Como percebemos as manifestações do nosso próprio corpo em contato com o mundo? E tudo isso é diferente da experiência da criança pequena, porque o adulto já aprendeu muita coisa. E desaprendeu várias outras. Eu estou aprendendo a reencontrar tantas versões de mim mesma! Acho que é sempre um devir o que a gente vai sendo e escolhendo. Talvez seja nas pequenas coisas que a gente se reencontre nesse estado perceptivo e recreativo, nesse lugar da imaginação. O mundo está precisando que a gente funde novas atitudes e modos de se relacionar. Precisamos poder imaginar outras possibilidades.

“As padronizações têm uma tendência de desrespeitar as singularidades e as várias possibilidades de existência. A escola não pode ser monocultura; algumas pessoas são calmas e outras são barulhentas, e isso deve ser valorizado, e não corrigido.”

NVocê trabalhou em museus e bienais de arte, tem uma história como profissional das artes plásticas. Como a literatura entrou na sua vida?

SFoi na minha infância. Eu tinha muitos bons contadores de histórias ao meu redor. Meu pai foi um contador de histórias incrível, minha mãe também. A narrativa oral foi o que primeiro me pegou. Quando eu era pré-adolescente, morava em Araraquara e a uma quadra da minha casa tinha uma biblioteca municipal. Frequentando essa biblioteca, lá pelos meus quinze anos, eu me lembro de um diretor que fez um movimento muito interessante na biblioteca; ele trabalhava com várias linguagens. Ele organizou uma publicação que era uma espécie de fanzine, com textos das pessoas da cidade. E propunha eventos e saraus para as pessoas tocarem instrumentos. 

Nessa época conheci Julio Cortázar, Clarice Lispector; eu me formei leitora nessa biblioteca. E lá tinha pessoas de todos os tipos, algumas até de outras cidades que iam para Araraquara para frequentar os encontros. Tinha uma diversidade e heterogeneidade de sotaques, idades e maneiras de ser. Eu convivia com pessoas mais velhas do que eu e pessoas da minha idade também. Foi um período de muita riqueza com o livro escrito e com o ambiente da biblioteca.

Ilustração de Quero colo, de Stela Barbieri e Fernando Vilela. Imagem: Arquivo pessoal

NComo surgiu a ideia para o livro Quero colo, selecionado pelo programa Leia com uma criança?

SSempre trabalhei com a primeira infância, minha vida inteira. Fui baby-sitter em Araraquara e aos 17 anos já era professora. Trabalhei 32 anos na Escola Vera Cruz, em São Paulo, sempre com crianças pequenas. Comecei como professora de classe, virei professora de artes e depois assessora de artes. Trabalhei muito com o currículo integrado, conversava com a equipe de coordenação e com os professores. Logo percebi que as crianças pequenas se identificavam quando tinha uma criança ou bichinho pequeno na história; elas se viam ali. Isso me impressionava! Até os bebês ficavam vidrados no livro quando o personagem era uma criança bem pequena.

E fiquei pensando nessa variedade de colos. Primeiro a ideia era falar do colo em diferentes países, aí depois entraram os bichos. O desejo era falar desse encontro com a criança pequena a partir da situação que ela mesma vive. Conversei com o Fernando Vilela, meu companheiro, com quem eu fiz o Quero colo. Falamos das sensações e sentimentos de um colo pra passear, outro para se curar, outro pra se divertir… Não esperávamos que o livro fosse ter essa abrangência! O programa Leia com uma criança é maravilhoso porque chega para tanta gente! Até hoje chegam cartas de bebês “lendo” o livro com as mães, e várias contam que eles pedem para repetir.

Os animais também dão colo. Imagem: Arquivo pessoal

NO que é ser um bom leitor?

SEu gosto de pensar que há algo anárquico na experiência de um livro; não há um jeito correto ou único de se relacionar com ele. Há o jeito de cada um. Recentemente eu e o Fernando estávamos indo viajar e, no banco da rodoviária, encontramos um livro. Alguém deixou o livro lá. E era uma obra superinteressante, uma história grega! Fomos apresentados para esse livro desse jeito único, superdiferente. Devoramos o livro na viagem. Os jeitos de se aproximar de uma história são variados: pode ser pela capa, pode ser porque você viu na internet, na livraria, ou então porque alguém indicou. E há muitos modos de ler. O corpo não precisa estar sempre sentado na cadeira. Eu me lembro de uma criança que uma vez me disse: “Eu penso muito melhor quando estou deitado”. Dá para ler deitado, por que não? O livro tem muitos modos de ler e muitas camadas. Ele abre portas para sua experiência pessoal de vida, sua memória, seus traumas. Podemos ficar muito tempo parados em um mesmo livro e também podemos voltar a ele tempos depois. As aproximações dos livros são como as aproximações com as pessoas: são vivas. A experiência de ler é singular. Eu, por exemplo, adoro quando alguém lê uma história para mim. 

Muitas vezes eu gravo minha história primeiro e depois transcrevo o que gravei. A oralidade é muito importante para mim. O Ailton Krenak, por exemplo, diz que seus livros são falados, não são livros escritos. Tanto para quem escreve quanto para quem lê, os modos de aproximação do livro são diferentes. A curiosidade e a capacidade de invenção do leitor são importantes nesse movimento.

Experiência de arte realizada no binåh. Imagem: Arquivo pessoal

NAs pessoas também aprendem de modos singulares e diferentes?

SCom certeza. Recentemente eu fiz um curso para o Sesi; eles pediram vídeos para a formação de professores. A equipe quis que eu fizesse algo sobre documentação. Eu e o Pedro Campanha, que trabalha comigo, fizemos entrevistas com dez artistas diferentes. Perguntamos a eles como eles aprendem e como documentam sua aprendizagem. As pessoas aprendem de jeitos muito diferentes! Tem gente que estuda no ônibus. Estuda em movimento. Tem gente que faz anotações e coloca um monte de post-its. Cada um tem seu método e os leitores também são assim, ou seja, cada um tem seu jeito de ler. 

Esses jeitos diferentes de aprender aparecem desde a primeira infância! Tenho dois filhos, e desde que nasceram são completamente diferentes. Um sente mais calor, outro sente mais frio, dorme de meia até hoje. Nossas expressões são muito singulares, e nossos jeitos de aprender também. As escolas, de modo geral, ainda estão batalhando e tentando fazer a acolhida desses vários modos de ser. Não é uma coisa fácil, é uma tarefa altamente complexa. Sinto que é uma pena quando a vida escolar mata a singularidade e padroniza todas as pessoas. Somos diferentes uns dos outros, e isso é muito rico. As padronizações têm uma tendência de desrespeitar as singularidades e as várias possibilidades de existência. A escola não pode ser monocultura; algumas pessoas são calmas e outras são barulhentas, e isso deve ser valorizado, e não corrigido.

Stela Barbieri em seu ateliê. Foto: Arquivo pessoal

NComo surgiu o binåh espaço de arte?

SEu fui diretora do Instituto Tomie Ohtake durante 12 anos e fui curadora do Educativo da Bienal de São Paulo. Em 2014 saí tanto do Tomie Ohtake quanto da Bienal. Eu e o Fernando Vilela já tínhamos um ateliê aqui na Lapa, onde fazíamos nossos trabalhos de escrita e artes plásticas, e resolvemos abrir esse espaço, pois queríamos dar aula e receber pessoas. Aqui fazemos investigações, pesquisas e prestamos serviços para instituições, escolas, museus. Também oferecemos cursos e adoramos comemorar e fazer festas. Aprendemos muito nas festas! Gostamos de inventar e trabalhamos com pessoas de todas as idades. É uma usina de invenções; fizemos ocupações diversas, como no Museu da Língua Portuguesa. E as narrativas, tanto no livro quanto na arte e na oralidade, estão permeando todas essas ações.

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