Jack Dieckmann
Diretor de pesquisa do centro de pesquisas focado em educação matemática Youcubed (Universidade Stanford, EUA), Ph.D. em educação matemática, professor adjunto do Programa de Formação de Professores de Stanford e consultor do programa Mentalidades Matemáticas


Por Wallace Cardozo, Rede Galápagos, Salvador (BA)
“Para que eu vou usar isso na minha vida?” Basta conversar com qualquer docente de matemática para confirmar que essa é uma das perguntas mais frequentes que os estudantes fazem durante as aulas. O questionamento é válido. Não deve mesmo parecer interessante para uma criança ou um adolescente aprender a solucionar equações se não conseguem ver sentido naquilo. Em alguns casos, o desinteresse se torna um bloqueio. Ansiedade matemática é o nome dado por especialistas à apreensão que certas pessoas sentem quando precisam lidar com alguma atividade que envolve matemática.
O Brasil tem um cenário preocupante. De acordo com relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), “a média de proficiência dos jovens brasileiros em matemática no Pisa 2018 foi de 384 pontos, 108 pontos abaixo da média dos estudantes dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)”. Ainda com base nos dados da pesquisa, o Ministério da Educação concluiu, no ano seguinte, que “68,1% dos estudantes brasileiros estão no pior nível de proficiência em matemática e não possuem nível básico de matemática, considerado como o mínimo para o exercício pleno da cidadania”.
Desde 2018, o programa Mentalidades Matemáticas (MM) conta com apoio do Itaú Social para promover uma nova forma de ensinar e aprender a disciplina no Brasil, por meio de uma abordagem aberta, criativa e visual. A iniciativa, uma cocriação do Instituto Sidarta e do centro de pesquisas Youcubed, da Universidade Stanford, já acumula evidências do sucesso da abordagem na relação de professores e estudantes com a matemática.
Jack Dieckmann, diretor de pesquisas do Youcubed, conversou com o Notícias da Educação a respeito da proposta da abordagem, que já é experimentada no Brasil por educadores de municípios como Cotia (SP) e Vespasiano (MG).
NNotícias da Educação — Como se deu a aproximação entre o Youcubed e o Instituto Sidarta?
JJack Dieckmann — O diretor do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) convidou o Youcubed para fazer uma palestra no Brasil, e fui escolhido para dar essa palestra. A ideia era só ir, falar e voltar. Só que no planejamento, junto com o Instituto Sidarta e Ya Jen Chang (presidente do Instituto Sidarta), percebi um engajamento muito intenso na nossa abordagem de Mentalidades Matemáticas. Percebemos que tínhamos um parceiro forte para, mais do que uma palestra, buscar formas de traduzir essa abordagem no Brasil. Então, começamos a entender as possibilidades de continuar esse diálogo para estimular ideias que poderiam se adaptar a esse contexto.
NComo era a sua relação pessoal com a matemática quando criança, e como esse interesse se desenvolveu?
JA matemática que experimentei na escola era bem tradicional e chata, muito baseada em decorar. Eu não tinha muito interesse. Até ia bem, tirava boas notas, mas não via muito sentido. Era sempre copiar na avaliação o que o professor estava fazendo, e pronto. Quando recebi a bolsa para fazer faculdade, quis me desafiar. Eu me perguntei o que de mais difícil poderia estudar, algo que eu não entendesse. Pensei em física ou matemática e acabei escolhendo matemática. Na faculdade, meus professores me ajudaram a entender que a matemática era mais sobre as ideias e menos sobre decorar procedimentos. Foi aí que eu gostei muito, porque era semelhante a um jogo mental, algo como um quebra-cabeça. Era diferente daquilo a que tive acesso nas escolas, onde precisava decorar sem entender, os erros eram punidos, e só alguns conseguiam realmente entender. No ensino superior, era muito mais criativo e aberto, e gostei muito disso.
NO que faz o centro de pesquisas Youcubed?
JTrazemos um olhar mais sistemático para entender os efeitos da abordagem MM. Nós entramos em escolas, municípios e distritos para testar essas ideias com professores e com alunos. Vemos mudanças de pensamento, que captamos por meio de questionários. Vemos também as interações na sala de aula. Gravamos as aulas e percebemos o nível de engajamento dos alunos com as tarefas e as práticas. Acompanhamos os resultados por meio das notas que tiram e das provas estaduais. Assim vemos a evolução. Temos várias fontes de informações como evidências de que a abordagem está dando certo. A forma de pensar dos alunos muda, as interações na sala de aula mudam e os resultados nas provas também. Como pesquisadores, nossa tarefa é juntar todas essas evidências, coletar e analisar juntos para publicar e mostrar o efeito, fornecendo evidências para os que querem testar nas suas escolas.
NO que você aprende com os profissionais da educação do Brasil?
JBom, acho que é importante entender que nós vemos a prática de ensino sempre como um ato cultural, ou seja, cada país tem as suas normas, a sua cultura, e a aprendizagem e a forma de dar aula estão baseadas nessas normas. Eu entendo as normas dos Estados Unidos, não as do Brasil. A ideia sempre foi entender quais das ideias que temos aqui [nos EUA] podem estimular e ajudar no contexto brasileiro, mas sem pensar que poderíamos simplesmente chegar e implantar o que funciona aqui, porque são contextos diferentes. Inclusive a forma como os professores são escolhidos, formados, remunerados, questões de leis trabalhistas… Tudo isso é bem diferente, então temos que respeitar essas diferenças. Nos contextos das pesquisas que já fizemos, o que eu diria que aprendi é que os alunos brasileiros estão prontos para aprender matemática em termos de querer entender, querer fazer conexões, perder o medo e a ansiedade. Quando têm condições melhores para a aprendizagem, os alunos conseguem, nos Estados Unidos ou no Brasil. Temos que lidar com as diferenças para que a MM possa entrar no sistema de ensino e ajudar professores e alunos.
“A matemática sempre foi algo como ‘aqui está a fórmula, este é o procedimento’. Se nós pudéssemos fazer de um outro jeito, em que ela tivesse sentido e víssemos conexões, acho que você poderia ter tido uma outra experiência com a matemática.”
NPor que a matemática ainda assusta professores e estudantes?
JA sociedade tem a percepção de que quem entende matemática deve ser considerado mais inteligente que os outros. Isso está errado. Temos na matemática escolar uma cultura excludente, que diz “só nós entendemos, vocês não entendem”, e que são poucos os que podem entender. Não acreditamos nisso, não temos evidência disso. Mudar esse padrão é difícil porque os que já se beneficiam dessa cultura não querem mudar. E os que se sentem fora realmente acham que não pertencem a esse grupo de inteligência. Isso causa um dano psicológico desnecessário. Se tiramos essas ideias e vemos a matemática como uma ciência de conexões, com diferentes jeitos de pensar, muitos mais conseguem, inclusive alunos que pensavam que não poderiam conseguir.
Quando trabalhamos com professores, especialmente os do fundamental 1, propomos uma atividade que chamamos de “Math Autobiography”, Autobiografia da Matemática, para entender a história deles com a matemática. Muitas vezes, contam experiências de quando seus professores os humilharam e os fizeram sentir-se mal. Esse efeito dura a vida inteira. O problema não era a inteligência deles quando eram crianças, mas a forma de ensinar e as crenças que os seus professores tinham. Acreditavam que só alguns conseguem e outros não. Quando falamos com matemáticos que não trabalham nas escolas, mas que fazem matemática na sua profissão, eles se referem à disciplina como algo bem aberto, algo que dá alegria a eles. É desafiador, mas dá alegria porque podem experimentar, colaborar uns com os outros, trocar ideias. É uma outra visão da matemática, diferente da que experimentamos nas escolas.
NComo você explicaria, para alguém que nunca ouviu falar, o que é a abordagem Mentalidades Matemáticas?
JEu perguntaria: “Você se percebe um ser matemático?”. A pessoa diria que é “das exatas”, ou que foge da matemática. Então, a depender do que ela diria, eu mudaria a minha resposta. Mas, em geral, eu perguntaria: “Como foi a sua experiência nas escolas aprendendo a matemática?”. A maioria diz que nunca entendeu o que estavam fazendo. Mesmo que tirasse notas altas, não entendeu. Mas por que conseguia entender as outras matérias, como história, inglês e ciências? A matemática sempre foi algo como “aqui está a fórmula, este é o procedimento”. Se nós pudéssemos fazer de um outro jeito, em que ela tivesse sentido e víssemos conexões, acho que você poderia ter tido uma outra experiência com a matemática. Isso afetaria, talvez, as suas escolhas e as suas carreiras, porque, quando queremos fugir da matemática, muitas carreiras são fechadas. Pensamos que não podemos fazer algo porque aquilo envolve muita conta, números e matemática, e que não somos capazes. Com isso, o número de caminhos possíveis vai diminuindo.
“O cérebro está disposto a entender ideias matemáticas visualmente. Queremos aproveitar essa neuroplasticidade para a forma de ensinar.”
NHá evidências da efetividade da abordagem?
JEssa é uma boa pergunta porque muitas vezes associamos evidências a pesquisas e seus resultados. Mas eu queria começar com as evidências para professores, as quais são os seus alunos. Sempre fazemos as atividades com professores para que percebam como fazer uma matemática aberta. Decupamos todas as camadas das atividades para que possam entender pessoalmente. Essa é a primeira evidência: a da experiência.
Uma segunda etapa de evidência, digamos, seria a aplicação nas salas de aula. Propomos atividades curtas, contas pequenas, conversas numéricas, para que experimentem com seus alunos e vejam a reação. Sempre ouvimos a mesma coisa: “Os alunos se mostram bem engajados quando perguntamos quem tem ideias. Todo mundo levanta a mão porque a atividade permite diferentes pontos de vista”. Então, uma segunda evidência é que os alunos gostam e estão engajados.
Depois, temos as pesquisas mais formais, que nos trazem evidências, nos Estados Unidos e também no Brasil, de que não precisa de muito tempo para mudar as ideias dos alunos, tampouco para a evolução dos resultados. Já registramos em cursos de férias um avanço significativo em apenas duas semanas de ensino com a abordagem MM. Quando falamos de evidências, sempre é “o que eu percebo” e “o que eu vejo nos meus alunos”. Mas sabemos que a política pública precisa de evidências mais formais, e temos isso também. Porém, os resultados de pesquisas formais não convencem ninguém. Os artigos acadêmicos são para outros acadêmicos. O que realmente convence é a experimentação. Quando professores aplicam nas salas de aula, ou visitam uma aula em que estão aplicando a MM, essas evidências falam muito mais do que a publicação de um artigo.
NO que é matemática visual?
JQuando muitos de nós aprendemos a álgebra, por exemplo, falamos sobre equações, de decorar fórmulas, procedimentos, teoremas etc., e essa é uma parte da matemática que trabalha com símbolos. Mas a matemática é muito mais abrangente do que isso. Temos padrões que só podem ser expressos visualmente, como gráficos e padrões de crescimento. Quando você olha e estuda esses padrões, percebe que está encaixado nas fórmulas, mas é muito mais acessível por meio de representações visuais. Muitos campos da matemática são quase completamente visuais. Não têm nada de contas, não têm nada de equações. São formas e padrões que podem ser expressos, entendidos e analisados visualmente. Então, nós pensamos que é funcional abrir a matemática e explicá-la de vários jeitos, com outras ferramentas visuais para além de equações e números. A neurociência confirma isso. Se eu dou uma conta… Por exemplo, quanto é 6 dividido por 7? Quando você está pensando nisso, mesmo que sejam só números, a parte do cérebro relacionada ao visual também é ativada. Sabemos, então, que o cérebro está disposto a entender ideias matemáticas visualmente. Queremos aproveitar essa neuroplasticidade para a forma de ensinar.
NO que são atividades de piso baixo e teto alto?
J“Piso baixo” significa que se trata de atividades fáceis de entrar, ou seja, não é preciso saber muito para começar. Uma vez imerso na atividade, quanto mais ferramentas e experiência, maiores as possibilidades de avanço. O aluno que sabe muito não vai terminar a atividade, porque sempre tem um nível mais alto para ser alcançado. Então, essas atividades que chamamos de “piso baixo e teto alto” são boas porque acolhem todo mundo. Se você sabe apenas o básico, consegue começar. Se você tem um conhecimento maior de matemática, também há muita coisa a explorar.
NNa sua visão, qual o principal desafio para a educação no Brasil?
JIgual ao dos Estados Unidos: acreditar nos professores, acreditar nos alunos, acreditar que se mudarmos a forma do ensino muito mais alunos vão conseguir não só gostar de matemática, mas querer escolher isso como profissão e ter outros caminhos abertos para eles na sua vida.
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