

Por Livia Piccolo, Rede Galápagos, São Paulo
Os efeitos da pandemia de Covid-19 sobre a educação, como se sabe, têm impactos duradouros e dificultam o acesso ao próprio direito à educação. Nesse cenário em que estudantes do mundo inteiro mergulharam em uma realidade inédita, as aulas virtuais e atividades à distância demandaram muita flexibilidade, adaptação e paciência por parte de toda a comunidade escolar. Essa realidade mostrou-se especialmente delicada para os estudantes com deficiência. Mesmo com o empenho de professores e famílias, nem sempre o aluno com deficiência pôde acompanhar as aulas, de acordo com análise elaborada pela Plano CDE, com base em dados de uma pesquisa Datafolha realizada com pais e responsáveis por crianças e adolescentes da rede pública, a pedido do Itaú Social, Fundação Lemann e BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), com apoio do Instituto Rodrigo Mendes (IRM). “Foram várias ondas de pesquisa”’, explica Luiza Corrêa, coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes. “Nós entramos para apoiá-la no meio do processo, elaborando as perguntas focadas nos estudantes com deficiência.”
Manter a rotina de estudos foi um enorme desafio. Entre os principais motivos está a falta de aparatos tecnológicos em casa. Nélik Annie da Silva, professora da Emeb Hilda Granemann de Sousa, em Caçador, Santa Catarina, diz que o começo foi muito difícil. “A Secretaria de Educação equipou as escolas com todas as plataformas. Mas eu trabalho em uma comunidade carente, onde as crianças não tinham computador e internet em casa para acessar as aulas remotas.” A impossibilidade de assistir às aulas, com o passar dos meses, gerou um profundo descontentamento entre os alunos com deficiência, fomentando a vontade de abandonar os estudos.
Em dezembro de 2021, o receio da desistência estava presente em 28% dos pais de alunos com deficiência, contra 19% dos demais, relata a pesquisa. Os motivos que justificavam a afirmação do primeiro grupo eram: não conseguirem acompanhar as atividades (31%), terem perdido o interesse pelo estudo (17%), precisarem trabalhar (5%) e não se sentirem acolhidos na escola (25%). A falta de acolhimento escolar foi o receio de 14% das famílias de alunos sem deficiência.
Casas sem internet
Nélik Annie da Silva conta que uma ação adotada foi adaptar as atividades para que as famílias as buscassem na escola a cada 15 dias. Além disso, foi fundamental o uso da troca de mensagens digitais. “Por causa das restrições da pandemia, não podíamos ir às casas das crianças. Começamos, então, a trabalhar pelo WhatsApp, e as famílias compartilhavam o que estava sendo feito. Com a comunicação pelo aplicativo, eu pude visualizar o que a família estava fazendo com a criança, se estava se envolvendo ou não. Foi uma ferramenta essencial; eu fazia vídeos, contava histórias. Até comprei ring light e outros adereços, parecia uma blogueira”, explica Nélik. Ela é professora de AEE (Atendimento Educacional Especializado), um direito das crianças e jovens com deficiência.
O AEE ocorre no contraturno e trata-se do encontro do aluno com deficiência com o professor especializado. A pesquisa demonstra que a situação foi crítica: 59% dos pais declararam que raramente ou nunca receberam o AEE. Entretanto, Luiza Corrêa, do Instituto Rodrigo Mendes, explica que o acolhimento dos alunos com deficiência não se refere somente ao contraturno. “Existe também uma tarefa do AEE que é um trabalho colaborativo com o professor regular daquele estudante. Qual seria o papel dele em um cenário ideal? Construir junto com o professor regente um modelo de aula em que aquele estudante conseguisse se engajar, participar, ter acessibilidade. O material entregue pelo professor, por exemplo, precisa ter acessibilidade para o estudante com deficiência. Se as aulas são feitas por meio de vídeo, é importante que o estudante consiga acompanhar, com legendas, janela de Libras, ou seja, os recursos de acessibilidade de que porventura ele precise. A pesquisa mostra que isso raramente foi feito.”
Durante todo o período pandêmico, aproximadamente um em cada dez estudantes com deficiência (13%) não teve nenhuma aula com recursos de acessibilidade. Além disso, 29% deles raramente ou nunca receberam materiais pedagógicos.

Acessibilidade comunicacional
Um dos efeitos trazidos pela obrigatoriedade do ensino remoto foi deslocar as prioridades quanto às barreiras educacionais. “No ambiente físico das escolas comuns, quando a gente pensa nos estudantes com deficiência, a primeira coisa que vem à mente é a acessibilidade arquitetônica, ou seja, a rampa e o elevador; pensamos em como o estudante vai acessar o banheiro, o bebedouro, a quadra etc.”, comenta Luiza Corrêa. Mas, mesmo no ambiente escolar, um estudante surdo, por exemplo, precisa da disponibilidade de um intérprete de Libras em tempo integral. E um estudante cego necessita que o professor use outros recursos além de escrever na lousa. Acessibilidade arquitetônica, portanto, é apenas uma parte do problema.
Com os alunos dentro de casa em ensino remoto, a urgência da acessibilidade desloca-se da arquitetura para a comunicação. “A prioridade é a acessibilidade comunicacional”, enfatiza Luiza Corrêa.
“Como isso se resolve de maneira a contemplar todas as diversidades? O intérprete de Libras é um profissional que já deveria estar contratado e à disposição, que deveria participar das atividades, dentro da plataforma usada para a aula. O educador deve pensar a aula já considerando as especificidades dos estudantes.”
A realidade, entretanto, mostra que a escola muitas vezes não está preparada para pensar isso de antemão. A solução é trabalhar com o professor de AEE e ampliar o diálogo com o próprio estudante e a família, perguntar quais são as soluções que mais ajudariam o aluno. “É importante perguntar: ‘Do que você precisa para acompanhar minha aula?’. Muitas vezes o próprio estudante dá as soluções”, explica Luiza Corrêa.
Diálogo bem-sucedido
O diálogo entre escola e família foi fundamental no caso de Tayse dos Santos Martins, mãe do Ruan, dez anos, autista moderado que estuda na Emeb Hilda Granemann de Souza, em Caçador, Santa Catarina. Ruan está no 5º ano e, apesar das dificuldades da pandemia, conseguiu acompanhar algumas aulas, em especial as de educação física, uma de suas matérias prediletas. “Eu gravava os vídeos e enviava para o professor. Fizemos as atividades práticas na garagem, as teóricas na sala de casa; as aulas foram fundamentais para a coordenação motora do Ruan”, conta Tayse dos Santos.
Ruan é um dos alunos atendidos por Nélik, e sua mãe relata a experiência: “No trabalho com ela o Ruan desenvolve sobretudo a leitura, o aprendizado do alfabeto e os números”. Tayse diz que percebeu melhora no desenvolvimento do filho durante a pandemia, ressaltando que a paciência e a disponibilidade dos professores foram fundamentais para isso.
Ainda não há dados suficientes para saber como se deu a volta dos estudantes com deficiência para as escolas, a partir do momento de reabertura. “A pesquisa mostra que eles apresentam uma tendência maior a não voltar”, diz Luiza Corrêa, do IRM. Nesse sentido, os esforços focados no grupo de crianças e jovens com deficiência precisam ser redobrados.
Saiba mais
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