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“Promovemos a consciência negra durante o ano todo”

No Piauí, escola quilombola implementa projeto político-pedagógico que envolve a comunidade e pauta questões raciais ao longo de todo o ano letivo


Apresentação dos estudantes da Escola Municipal Joca Batista, na Vila Carolina, zona rural de Campo Largo do Piauí. Foto: Divulgação

Por Wallace Cardozo, Rede Galápagos, Salvador (BA)

É fácil arrancar um sorriso de Maria dos Milagres enquanto ela fala e percebe quanta coisa aconteceu ao longo do tempo. Muitos dos adultos da comunidade, hoje profissionais de diversas áreas, estiveram sob os seus cuidados em algum momento — 42 dos seus 61 anos de vida foram dedicados à educação. Ela foi a primeira professora da região e, paralelamente, alguns desses anos também precisaram ser dedicados à luta. Como costuma dizer, os mais jovens não vivenciaram esse período, mas precisam saber o que aconteceu.

Assim como seus sete irmãos, Milagres nasceu e cresceu na Vila Carolina, zona rural de Campo Largo do Piauí. O local foi palco de resistência por parte da população na busca de seus direitos sobre as terras. Alguns moradores chegaram a ser despejados e a ter as suas casas queimadas. Tudo isso, conta a professora, aconteceu há menos de 40 anos. “Nossos pais sofreram com a exploração, até que viemos nós, os filhos. Conhecemos o movimento negro e entendemos que tínhamos o direito de nos livrar daquilo e de conquistar o melhor para nós. A luta foi árdua.”

Livre dos exploradores, a Vila Carolina ainda tem problemas. Durante os períodos de chuvas intensas, por exemplo, a localidade fica parcialmente ilhada. Isso ocorre porque a região é ribeirinha e um trecho da principal estrada acaba ficando submersa com as cheias. É nesses momentos, no entanto, que o senso de comunidade, fortalecido pelos movimentos de resistência antes necessários, fica evidenciado no local, reconhecido e contabilizado pela Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí. 

A comunidade fica a cerca de sete quilômetros do centro do município. Apesar da existência de equipamentos como escolas e creches e da prática da agricultura de subsistência por parte dos moradores, muitas pessoas buscam oportunidades de trabalho em outras regiões da cidade ou em municípios vizinhos. Entretanto, esse não é o caso de Francisco Denilson, o Dedé. Ele atua como gestor escolar e professor na Escola Municipal Joca Batista, onde estudou e foi aluno da “Tia Milagres”. Fazê-lo sorrir também não parece ser algo difícil. Basta pedir que ele fale sobre “o projeto”.

O projeto e a comunidade
Denilson e Milagres participaram do percurso formativo on-line da tecnologia educacional Gestão da educação para a equidade racial, parte do programa Melhoria da Educação, do Itaú Social. A formação tem como objetivo auxiliar redes de ensino de todo o país a ressignificarem seus processos pedagógicos e de gestão com vista à construção da equidade racial. Os aprendizados dos educadores estão sendo aplicados na Escola Municipal Joca Batista, a principal instituição de ensino fundamental da região.

“É ainda mais importante tratar dessas questões num território quilombola. Eles já têm um pouco desse conhecimento com a vivência da própria comunidade”, comenta a professora Maria dos Milagres. Seu ex-aluno Dedé observa que, mesmo com a experiência do quilombo, algumas pessoas ainda têm dificuldade com a autoaceitação e sofrem com o preconceito vindo de pessoas de fora. “Os temas que vi na formação são assuntos que vivencio e abordo todos os dias.” “Educação para as relações étnico-raciais” e “Diagnósticos e indicadores para monitoramento da equidade racial” são algumas das etapas do percurso.

Desde o ano passado, a escola adotou um projeto político-pedagógico quilombola. A proposta foi construída coletivamente por professores, estudantes, funcionários e outros membros da comunidade Vila Carolina. Faz parte do documento o compromisso com a realização de outro projeto, que já acontece desde 2013. Foi idealizado por uma professora chamada Alcione e tem como objetivo integrar escola e comunidade por meio da promoção de atividades que pautem as questões raciais.

Os professores Milagres e Denilson. “Quando comecei, a escola era uma casinha de palha. Hoje, temos uma escola grande, com seis salas, que abrange todo o ensino fundamental”, orgulha-se Milagres. Foto: Divulgação.

“Começamos a desenvolver as atividades sempre no início de cada ano. Trabalhamos em sala de aula temáticas relacionadas à negritude e à própria história do território para que os jovens saiam da escola se reconhecendo enquanto pessoas negras e se denominando quilombolas”, explica Denilson. Portanto, fazem parte da rotina escolar dos estudantes da Escola Municipal Joca Batista rodas de conversa, palestras e aulas de capoeira, por exemplo. “Estamos promovendo e falando em consciência negra durante o ano todo.”

Mas é no mês de novembro que acontece o principal momento de integração entre escola e comunidade. O evento de culminância do projeto é uma grande celebração das culturas afro-brasileiras. Além das atividades que já são promovidas ao longo do ano, competições como o campeonato de futsal e o concurso da beleza negra movimentam a Vila Carolina. Outro momento tradicional é o dia da beleza, em que são realizados gratuitamente serviços de cuidado com unhas e cabelos. “Nada de alisamento. Oferecemos relaxamento, hidratação, fazemos tranças e outros penteados”, exemplifica Dedé, um dos coordenadores do projeto.

A cada ano, a expectativa aumenta. O professor sonha alto. “Até o ano passado, chamávamos apenas de Projeto Consciência Negra. Mas agora, com uma notoriedade cada vez maior, passaremos a chamar de Festival da Consciência Negra.” Em 2023, a atividade terá três dias de duração pela primeira vez. “Quando se fala em comunidade quilombola, muitas pessoas associam a casas de taipa e pensam em um local sem desenvolvimento social. Nosso território é desenvolvido e desejo que um dia alcancemos notoriedade com esse festival, não só em nível municipal, mas estadual ou mesmo nacional.”

No passado, a professora Maria dos Milagres também ousou sonhar. “Quando comecei, a escola era uma casinha de palha. Hoje, temos uma escola grande, com seis salas, que abrange todo o ensino fundamental. Mudou para melhor, ainda bem.” Denilson, que foi seu aluno e agora é colega de trabalho, foi beneficiado pelo sonho da professora. Ela se derrete: “Eu me sinto muito orgulhosa por ter educado esse menino dessa forma. Hoje, é ele quem me orienta. Incentivou para que eu fizesse esse e outros cursos. Agora, quer porque quer que eu faça uma pós-graduação”, conta, sorrindo um sorriso fácil.

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