

Por Luana Gurgel, Rede Galápagos, Fortaleza (CE)
Maria Antonia Nogueira é aluna do Instituto de Arte e Educação Circo Multicor. Aos 15 anos se reconhece como negra e abraça essa identidade. O primeiro contato com a instituição se deu por meio da escola onde estuda. Na época, numa apresentação do desfile de Sete de Setembro, ela interpretou uma personagem africana. Há cinco anos participa das atividades do Circo Multicor, uma iniciativa artística cultural que funciona desde 2018 no município de Beberibe (CE). Seu foco é o acompanhamento e a formação de crianças e adolescentes, por meio do fortalecimento da consciência étnica.
O Circo, como é chamado na região, neste ano conta com o apoio do Edital Fundos da Infância e da Adolescência (FIA), do Itaú Social, que seleciona propostas com diferentes linhas de atuação.

As iniciativas apoiadas incluem desde o atendimento e acolhimento direto de crianças e adolescentes até campanhas educativas e fortalecimento do trabalho em rede para a defesa de seus direitos. Os projetos selecionados são beneficiados com recursos provenientes da destinação de 1% do imposto de renda devido das empresas do Conglomerado Itaú Unibanco Holding S.A. e da contribuição realizada por colaboradores do Itaú. Todos os contribuintes podem fazer a destinação de até 6% do imposto de renda devido.
Reconhecimento das matrizes
Maria Antonia começou a frequentar o Circo aos dez anos, quando a iniciativa ainda era um projeto itinerante, antes de sua instituição como uma organização da sociedade civil. Uma das maiores dificuldades que a menina enfrentava era o preconceito entre os colegas na escola em relação ao seu cabelo crespo. A saída que ela encontrava na época era prender os cachos. Ela conta o que as outras crianças faziam: “Zoavam, era como se eu tivesse me acostumado, mas comecei a ver que aquilo era errado”.

Nessa compreensão, Maria Antonia não apenas se apropriou do cabelo, como abraçou a cultura de sua ancestralidade. “Para mim, ser negra é aceitar meu tom de pele, meu cabelo e conhecer meus antepassados. Aceitar minha história e como eles viveram”, explica a adolescente.
A mãe de Maria Antonia também reconhece o impacto da instituição na percepção das meninas da mesma geração que sua filha. “O Circo veio abrir a mente delas. A maioria das meninas não se aceitava”, explica Zenilda Sousa.
Cabelo como símbolo de poder
O reconhecimento da ancestralidade e cultura não fica apenas entre os alunos. Roberta Rocha é facilitadora no Circo. A jovem foi chegando aos poucos à instituição. Começou atuando em um espetáculo e hoje auxilia a professora de teatro. O cabelo crespo também foi um desafio na infância de Roberta. “Na época do ensino fundamental, sofri preconceito por causa do meu cabelo, chamavam de cabelo ruim, cabelo de bagaço de laranja”, conta a educadora. A relação com o cabelo chegou a trazer dificuldades ainda maiores na juventude. “Dizem que cabelo de cacho aberto é mais bonito, o crespo não. Precisei cortar bem curtinho, estraguei meu cabelo. Na época coloquei trança e fui chamada para o Circo.” Hoje ela tem outra relação com essa referência da força e do poder negro. “É um símbolo muito forte; as pessoas me conhecem pelo meu cabelo, ando com ele solto, black mesmo.”

Etnicidade em pauta
O Circo Multicor nasceu de uma inquietação da educadora indígena Lucelena Honorato. “A gente se baseia em três princípios: a valorização do patrimônio histórico e cultural dos afrodescendentes e indígenas, a inclusão de novos saberes no currículo escolar e o compromisso para que tudo isso resulte na reeducação para as relações étnico-raciais”, explica Lucelena. “Esse tripé é fundamental para trabalhar no enfrentamento do racismo.” A região tem riquezas ancestrais nas matrizes negras e indígenas, das quais são resgatados os elementos trabalhados pela instituição. Lucelena lembra a importância das vivências em rodas, horizontalizando estudantes e educadores, e das práticas tradicionais da região, como o papangu, manifestação típica dos dias da Semana Santa. Todas as atividades são associadas ao ensino de línguas e a formações diversas.
A gestora explica que na localidade existem indícios materiais que relacionam o território de Beberibe à presença indígena ligada às atividades litorâneas, como um possível cemitério na área do município. Essa presença também se percebe em hábitos e traços culturais como aqueles presentes na gastronomia e artesanato locais. Há uma grande diferença entre o processo de identificação da comunidade negra comparada à indígena na área, de acordo com Lucelena. “A presença indígena nessas regiões é mais invisibilizada.”

Multicor na comunidade
A iniciativa também faz diagnósticos sobre violências contra crianças e adolescentes relacionadas ao trabalho infantil e questões raciais. Uma das estratégias é o uso do teatro para a discussão sobre racismos nas comunidades de Beberibe. Também incentiva e promove ações de protagonismo dos adolescentes na internet.
Foi por meio do Circo que os estudantes participaram de intercâmbios culturais com a companhia francesa de circo Compagnie des Contraires, que resultou em um espetáculo com jovens dos dois países.

Para a instituição receber os recursos vindos do IR, há uma intermediação do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Cabe ao Conselho a seleção das iniciativas contempladas com o benefício. Gleison Lima, presidente do Conselho de Beberibe, afirma que o Circo Multicor alcança quase todas as crianças e adolescentes do município de forma direta ou indireta. “O instituto chega até mesmo aos territórios mais distantes, a 90 quilômetros da sede.” E ressalta a importância estratégica das ações do Circo. “As propostas incluem dois eixos, promoção e proteção, e conseguem se articular de forma a trabalhar com as políticas públicas municipais.”
Saiba mais
- Edital Fundos da Infância e da Adolescência 2021
- Programa IR Cidadão
- Conheça os projetos selecionados no Edital FIA