Ir para o conteúdo Ir para o menu Ir para a Busca

AGÊNCIA DE

Notícias

Boas lições

Estudantes do povo macuxi são estimulados a valorizar sua ancestralidade

Educadora de Roraima conta sobre os desafios do ensino do português e da importância da literatura indígena na ação de resgate da história macuxi


Jeane Almeida da Silva, Kaikusi’pa (onça brava), professora da Escola Estadual Indígena Índio Marajó, no município de Normandia, em Roraima. Foto: Arquivo pessoal

Por Livia Piccolo, Rede Galápagos, São Paulo

Embora não seja falante plena da língua macuxi, Jeane Almeida da Silva faz questão de se apresentar com seu nome indígena, Kaikusi’pa, cujo significado é onça brava. Ela é natural de Roraima, dos povos macuxi e taurepang. Graduada em licenciatura intercultural e mestranda em letras no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima (UFRR), trabalha, desde 2014, como professora da rede municipal de Normandia, no norte de Roraima, na Escola Estadual Indígena Índio Marajó, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, comunidade Guariba. 

Depois de anos de luta dos movimentos indígenas e sociais, Jeane hoje é professora efetiva graças ao concurso público diferenciado para professores indígenas. Segundo ela, em comparação com os professores indígenas, muitos dos educadores não indígenas não têm o mesmo compromisso com os alunos. O concurso para professores indígenas é uma forma de preservar a cultura dos povos originários e a continuidade dos projetos pedagógicos. Jeane é professora de português e artes, e a valorização dos idiomas e da leitura é seu maior desafio como educadora. Como ensinar o português e, ao mesmo tempo, resgatar e valorizar a cultura macuxi? Em primeiro lugar, é preciso ter um vínculo forte com a comunidade. 

No Brasil, o território macuxi está recortado em três grandes blocos territoriais atualmente: a TI (Terra Indígena) Raposa Serra do Sol, a TI São Marcos, ambas concentrando a grande maioria da população, e pequenas áreas que circunscrevem aldeias isoladas no extremo noroeste do território macuxi, nos vales dos rios Uraricoera, Amajari e Cauamé, em Roraima. A mais populosa é a TI Raposa Serra do Sol, onde está localizada a Escola Estadual Indígena Índio Marajó. Segundo o site do Conselho Indígena de Roraima, na TI Raposa Serra do Sol, além dos macuxis, habitam os povos wapichana, taurepang, ingarikó e patamona.

Jeane Almeida passa parte da semana em Normandia e parte em Boa Vista, onde também tem família. Ela ressalta que diversas vezes, fora do horário de aula, os alunos e suas famílias chamam os professores e demandam sua ajuda para solucionar problemas da aldeia e pedir apoio a suas realizações. “As famílias contam com a presença dos professores na festa da Despedida do Vaqueiro, por exemplo, um evento social e cultural importante para a comunidade.” Atuar como professora indígena, portanto, extrapola as paredes da sala de aula e inclui até mesmo auxiliar uma família a construir uma casa de adobe e tijolo artesanal e a passar os ensinamentos para a nova geração. 

Ancestralidade indígena
A Escola Estadual Indígena Índio Marajó tem cerca de 300 alunos matriculados; eles moram nas 14 comunidades vizinhas e muitos não conseguem chegar para as aulas quando é época de chuva forte. “As estradas são de terra e eles vêm de carro ou micro-ônibus; quebra pneu, falta combustível, são muitos os problemas para eles chegarem à escola.” 

Jeane Almeida dá aulas para as duas salas de 1º ano, cada uma com cerca de 20 alunos, para o 9º ano, com 14, e para os alunos do ensino médio. A maioria dos estudantes é da etnia macuxi e alguns demonstram a vontade de pesquisar mais a fundo a própria ancestralidade. Uma aluna adolescente descobriu, recentemente, que sua família macuxi se misturou com o povo mapuche algumas gerações atrás. “É uma grande felicidade quando percebo os alunos investigando a cultura indígena com autonomia, a partir de seus próprios questionamentos.” 

Vista externa da Escola Estadual Indígena Índio Marajó, na comunidade Guariba, município de Normandia, Roraima. Foto: Arquivo pessoal

Ensinando o idioma
Para ensinar o português, Jeane Almeida enfrenta desafios variados. Em primeiro lugar, ela diz que cada grupo tem um jeito de falar e é preciso parar com o preconceito linguístico. “E isso não ocorre somente com os indígenas; grupos periféricos e grupos urbanos têm formas diferentes de falar o português”, a educadora pondera. Segundo ela, é muito complicado “passar a régua e dizer que todos precisam falar da mesma maneira”. Há conteúdos que ela precisa transmitir, pois estão nos livros didáticos fornecidos pelo governo, mas, muitas vezes, são conteúdos descolados da realidade diária dos estudantes. “Preciso ensinar oração sindética e assindética e, se não usar como referência algo da vida deles, da comunidade, o conteúdo fica sem sentido.” Os livros didáticos muitas vezes trazem imagens, exercícios e referências distantes do cotidiano dos estudantes macuxis. “Paulo Freire trouxe essa questão também: por que usar um livro didático que tem o desenho de uma fruta jamais experimentada ou nem sequer vista pelos alunos? Isso precisa mudar.”

Outro ponto desafiador para a educadora diz respeito ao português falado em sala de aula e o português falado em casa. Os pais dos alunos não foram escolarizados e, nas aldeias, os estudantes falam muitas variações orais. “Eu fez isso”, por exemplo, é uma forma corrente nas aldeias. “Preciso abordar o tema com jeitinho e explicar que, apesar de os pais e avós falarem dessa maneira, o correto é ‘eu fiz isso’”, conta. A educadora explica para os alunos que, caso queiram fazer uma faculdade, precisam aprender a forma correta do português. “A aldeia é uma comunidade pequena; há um mundo lá fora e, para pisar nele, é preciso saber mais”, ela explica.

O ensino do português, então, corre em paralelo com a valorização da cultura macuxi e com o incentivo do resgate da ancestralidade.

Jeane Almeida deseja construir uma biblioteca para as crianças e jovens. Foto: Arquivo pessoal

“Infelizmente algumas pessoas mais velhas da aldeia acham ruim ser indígena e passam pra frente preconceitos, como a ideia de casar com branco para ‘limpar o sangue’; há pais de alunos que falam o idioma macuxi e outros que dizem não gostar da cultura indígena.” Jeane relembra um familiar já falecido de um aluno que disse a ela o seguinte: “Eu não quero que meu filho aprenda macuxi, porque no vestibular não vai ter macuxi”. São questões complexas que precisam ser compreendidas e trabalhadas com todo o cuidado.

O poder dos livros
Um dos projetos que a educadora gostaria de realizar na escola é a abertura de uma biblioteca, para que pudesse ler com os alunos e incentivar o hábito de leitura. “Quando eu falo de literatura, também posso abordar história, biologia, geografia. Os saberes estão interligados.” Para incentivar a leitura, Jeane levou durante alguns meses vários gibis para os alunos. Segundo a educadora, eles adoraram — e pediram mais. Mas ela precisou explicar que não era possível comprar muitos outros exemplares, uma vez que estava pagando os gibis com o próprio dinheiro, pois os recursos da escola são muito limitados. “Uma biblioteca é algo tão básico! Mas a escola ainda não tem uma.” 

A literatura indígena foi outra maneira eficaz de atrair os alunos e alunas para a leitura; livros dos escritores Daniel Munduruku e Cristino Wapichana, por exemplo, fizeram com que os estudantes se reconhecessem nas histórias. “Eles se identificaram com as histórias narradas pelos autores indígenas, dizendo que os personagens pareciam seus avós, pais e irmãos”, lembra. 

Em 2021, a educadora participou de um curso de extensão pelo Núcleo de Educação a Distância da Universidade Federal de Roraima, intitulado Literaturas indígenas: oralidades, línguas e escrita. Ela conta que passou a conhecer mais sobre a literatura feita por autoras e autores indígenas. A partir da interação com os professores do curso, nasceu o projeto Jamaxim Cultural, com o objetivo de levar obras de escritoras e escritores indígenas às escolas indígenas de Roraima. “Eu pergunto aos alunos se eles conhecem histórias parecidas com as dos livros; se suas famílias falam dos encantados, por exemplo. Às vezes eles contam versões diferentes das histórias que estão no papel; é uma troca muito rica”, relata. Ela também explica que “encantados” é a forma de chamar pessoas falecidas que tomaram outra forma, ou ainda pessoas que desapareceram na mata ou no rio; as histórias dizem que foram morar em outro lugar não visível.

Desfazendo estigmas
Para a educadora, é muito recompensador quando ela enxerga os frutos do seu trabalho. “Uma aluna, certa vez, disse que gostava das minhas aulas e queria ser como eu quando crescesse. Isso me emociona, porque mostra que coloquei uma sementinha dentro deles indicando que é possível mudar de realidade.” Jeane explica que ainda há muitos estigmas em relação a crianças e jovens indígenas — preconceitos que dizem que eles não são inteligentes ou então que são muito lentos. “Mostro a meus alunos que nada disso é verdade e que eles podem construir um futuro melhor.”

Saiba mais

Leia mais

Assine nossa newsletter

Com ela você fica por dentro de oportunidades como cursos, eventos e conhece histórias inspiradoras sobre profissionais da educação, famílias e organizações da sociedade civil.