Dez perguntas para
Caroline Jango
Diretora do Instituto Federal de São Paulo câmpus Hortolândia, pedagoga, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) e pesquisadora aprovada para o edital Equidade Racial na Educação Básica


Por Wallace Cardozo, Rede Galápagos, Salvador (BA)
“Sou a única mulher negra no cargo de direção, entre todos os 36 câmpus do Instituto Federal de São Paulo (IFSP).” Caroline Jango atua na gestão do câmpus Hortolândia. Foi lá que a pedagoga, por meio do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi), ajudou a construir o projeto AfroIF — Currículo, Pensamento Decolonial e Formação Docente”. O objetivo é entender as dificuldades dos docentes e pensar soluções para uma prática pedagógica voltada ao antirracismo.
O estudo foi dividido em três etapas. A primeira delas consistiu numa análise diagnóstica das práticas docentes relacionadas ao ensino da cultura e história africana, afro-brasileira e indígena no IFSP. Foram ouvidos 319 professores de todos os câmpus. As duas fases seguintes foram um espaço de formação continuada e o Ubuntu Maker, momento voltado à produção de recursos pedagógicos e projetos baseados nos apontamentos do diagnóstico.
O AfroIF é um dos estudos selecionados pelo edital Equidade Racial na Educação Básica, que buscou a mobilização e articulação de escolas, redes de ensino, coletivos, centros de pesquisa e organizações da sociedade civil para viabilizar e fortalecer estratégias de enfrentamento das desigualdades raciais na educação. A iniciativa do Itaú Social contou com a realização do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) e a parceria do Instituto Unibanco, da Fundação Tide Setubal e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Na categoria Pesquisa Aplicada, foram selecionados 15 projetos, desenvolvidos durante um período de 18 meses, a partir de outubro de 2020. Já na categoria Artigo Científico foram nove selecionados, sendo três artigos feitos por estudantes de graduação, três de mestrado e três de doutorado. A publicação digital que reúne todos os projetos selecionados pode ser acessada neste link.
A pedagoga Caroline Jango conversou com Notícias da Educação sobre a primeira etapa do estudo AfroIF — Currículo, Pensamento Decolonial e Formação Docente.
NNotícias da Educação — Em que momento e por que você decidiu começar a estudar relações raciais e de gênero?
CCaroline Jango — Estudo as relações raciais e de gênero há 16 anos. Comecei em 2005, na graduação em pedagogia, a partir de uma disciplina de psicologia que abordava elementos referenciais para compreender o tema do racismo na sociedade. Sempre tive uma inquietação e busquei dialogar sobre o meu pertencimento racial e sobre as dinâmicas raciais, mas ainda de um ponto de vista próximo ao senso comum. Eu não tinha repertório científico. Na graduação, passei a tê-lo e já em 2006 iniciei a minha primeira pesquisa na área, uma iniciação científica. De lá para cá, toda a minha trajetória acadêmica — a pesquisa de conclusão de curso da graduação, o mestrado e o doutorado — foi desenvolvida a partir do tema do racismo na educação.
NA partir da sua vivência, como você entende que as questões de gênero e de raça se relacionam?
CElas são estruturais e estruturantes da nossa sociedade. Por causa disso, é impossível não pensar a intersecção de gênero e raça. Para além dos estudos, algumas situações da minha vivência pessoal foram de questionamento dos espaços que fui ocupando ao longo da minha trajetória profissional. Tudo isso vai me dando evidências de que não importa apenas o fato de eu ser mulher, mas ser uma mulher negra em determinados espaços sociais que, historicamente, não costumam ser ocupados por nós. É uma sensação de não lugar. Sou uma mulher negra que nasceu numa periferia, na cidade de Hortolândia, interior do estado de São Paulo. Tive uma vivência de infância periférica e isso já me deu uma dimensão do que é ser negro dentro desse ambiente. A partir de oportunidades que tive ao longo da minha trajetória escolar e acadêmica, em escolas públicas, esse olhar para a temática e para o meu pertencimento racial se acentuou. Tenho total compreensão dessa vivência e de como isso vai me atravessando.
”As pessoas conseguem perceber história, geografia, arte, literatura, mas não a história e cultura africana e afro-brasileira como uma dimensão do conhecimento que se aplica à saúde, à tecnologia, às ciências exatas e às ciências humanas.”
NA tese do seu mestrado resultou no livro “Aqui tem racismo” (ed. Livraria da Física). Como foi o desenvolvimento de sua pesquisa?
CO mestrado é resultado das pesquisas feitas anteriormente. Fiz uma iniciação científica pensando nos estudantes dos programas de ação afirmativa da Unicamp em determinada época e percebi que a graduação era um momento em que essas pessoas já haviam passado por trajetórias de discriminação. Na educação infantil já existem todos os elementos ali indicados, que dão a dimensão dos mecanismos de discriminação. Fiz essa pesquisa dialogando com os professores e observando na escola a prática pedagógica e os recursos didáticos utilizados. Quando vi os resultados, percebi que outros pesquisadores já haviam observado dados parecidos. Eu precisava ir até a escola, mas dessa vez para falar com as crianças. A pesquisa foi feita em 19 municípios da região metropolitana de Campinas, em uma escola de cada. Ao todo, 57 crianças negras foram entrevistadas. Quando eu fazia provocações sobre o cotidiano da escola, como “conte uma coisa boa” e “conte uma coisa ruim”, elas traziam o racismo como uma coisa ruim. Não precisei falar exatamente sobre racismo porque a discriminação racial é o que de ruim acontece com elas cotidianamente. É importante ressaltar que as crianças sabem do seu pertencimento racial. Todas elas colocaram qualificativos como “sou preto”, “negro”, “marrom” ou “pardo”. Contaram situações de racismo pelas quais passaram, mesmo que eu não tivesse questionado sobre essas situações especificamente. Perguntei: “Se pudesse escolher ser alguém da sua turma, quem você seria?”. A grande maioria das crianças respondeu que gostaria de ser algum de seus amigos brancos. Quando questionadas sobre o motivo, diziam que eles são os mais inteligentes, os mais bonitos e tiram as melhores notas. A minoria que colocou que gostaria de ser algum dos amigos negros identifica o porquê como “ele é legal”, “ele é divertido” ou “ele é meu amigo”. Ou seja, nenhuma criança atribuiu beleza e inteligência a um colega negro. Observamos que essa trajetória da criança negra no ambiente educativo vai ensinando a ela que ser negro não é ser inteligente, não é ser bonito. Também apareceu nas evidências uma postura de omissão da escola, em que boa parte das crianças que ousaram levar a questão da discriminação para professores ou para a direção não encontrou apoio. Algumas até foram ensinadas que não poderiam ser violentas, revidar ou se defender dessa violência cotidiana que é o racismo.

NVocê afirmou que os desafios relacionados à prática de uma educação antirracista se colocam durante toda a trajetória educacional, desde a educação infantil até o ensino superior. Em qual das etapas agir primeiro?
CO racismo estrutural tem uma dimensão de atuação muito ampla e forte. Nosso enfrentamento e a reeducação das relações étnico-raciais têm que estar à altura. Não há a possibilidade de escolher qual dimensão atacar primeiro porque estaríamos enxugando gelo. Toda ação precisa ser correlacionada com um conjunto de outras ações. Na educação, é preciso construir um modelo antirracista. Isso demanda olhar para todos os níveis de ensino. A educação infantil é a etapa em que se dá a formação inicial, a socialização das crianças, o primeiro ambiente para além da família em que precisam socializar. Se estamos falando de um racismo que é estrutural, os mecanismos de discriminação racial estão presentes em todas as instituições de ensino, de todos os níveis, afetando toda a trajetória do sujeito negro. Então, não posso afirmar que há um momento prioritário na trajetória educacional. O que tenho a dizer é que é necessário enfrentar o racismo em todos os níveis de ensino. Com isso, a reeducação das relações étnico-raciais vai ser muito mais efetiva e viável. Ao trabalhar a educação antirracista desde a infância, é possível construir uma identidade negra positiva, inclusive a partir de saberes e de conhecimentos africanos também.
NComo surgiu a ideia do AfroIF?
CEntrei no Instituto Federal de São Paulo em 2013. Como já havia feito o mestrado, tinha uma pesquisa consolidada sobre o tema, mas estava entrando numa instituição que não fazia essa discussão. Compus a coordenadoria pedagógica do câmpus Hortolândia, onde lidava com quase todos os estudantes. Pouco tempo depois da minha chegada, presenciei uma situação durante uma atividade de plantio de mudas de árvore, que visava construir uma perspectiva de pertencimento por parte dos estudantes em relação à instituição. Dois deles estavam utilizando uma cavadeira para fazer os buracos onde as palmeiras seriam plantadas, um menino negro e um branco. De repente, o menino branco parou de cavar, olhou para o colega e falou: “Não vou mais cavar isso. Cava você, que é descendente de escravos”. Naquele momento, acessei uma revolta de quem já estava desde 2005 pesquisando e propondo essa discussão e, em 2013, ouviu aquilo dentro de um ambiente de ensino. Comecei a pensar um projeto junto com um colega chamado Gustavo. Pouquíssimas pessoas falavam sobre o assunto, mas precisávamos de multiplicadores. Tínhamos que ensinar as pessoas sobre esse tema e possibilitar que multiplicassem a discussão. Criamos o AfroIF — Multiplicadores da Temática Afro no IFSP. Foi um projeto de extensão que nasceu dessa necessidade. Tinha quatro estudantes bolsistas, que nos ajudaram a pensar o que poderia ser feito…
“Pusemos a impressora 3D para imprimir ferramentas que simbolizam os orixás. A apropriação dos espaços da tecnologia é importante para fazer o resgate da memória e da história e para envolver profissionais que não entendiam o seu papel na luta antirracista.”
NEntão, nesse primeiro momento, o AfroIF era um projeto mais voltado aos estudantes…
CSim. Era um projeto de extensão com o objetivo de ensinar aos estudantes, para que pudessem ser multiplicadores. A partir dessa discussão, fui convidada a trabalhar na pró-reitoria de extensão, em 2014. Foi quando começamos a construir o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) do Instituto Federal, que foi lançado no ano seguinte. Por meio da atuação do núcleo, o projeto AfroIF foi replicado no câmpus Matão. Fui coordenadora do Neabi por cinco anos. Mobilizamos, construímos e defendemos a discussão das relações étnico-raciais no Instituto Federal. Quando chegou a pandemia, o instituto ficou com as aulas suspensas e focamos bastante nas reuniões do Neabi. Quando foi lançado o edital Equidade Racial na Educação Básica, entendemos que era uma super oportunidade para dar continuidade às nossas ideias. Unimos aquilo que já existia como ideia do projeto AfroIF e um projeto que eu tinha desenvolvido para um concurso da UFABC, que foi suspenso por causa da pandemia. Sentamos com mais alguns colegas e as ideias foram se encaixando de uma maneira que possibilitou a criação do AfroIF — Currículo, Pensamento Decolonial e Formação Docente. Currículo era um dos elementos que mais estávamos pautando na instituição, a inserção da história e cultura africana e afro-brasileira. Pensamento decolonial, em razão das referências que passamos a incorporar. A formação docente é aquilo que entendemos como o mais necessário para que a reeducação das relações étnico-raciais, de fato, aconteça.
NQuais foram as principais dificuldades e limitações apontadas pelos professores em relação a uma educação antirracista?
COs profissionais que mais apontaram dificuldades foram aqueles de áreas técnicas, tecnológicas e das ciências exatas e biológicas. Em geral, têm dificuldade em identificar a relação entre o conhecimento que compartilham e a história e cultura africana e afro-brasileira. Existem ainda aqueles professores que não reconhecem que essa é uma necessidade. Estes entendem que a sua área de conhecimento não deve nada à história e cultura africana e afro-brasileira e à discussão interseccional de gênero. Percebemos uma dificuldade de pensar esses temas como uma dimensão transversal, efetivamente multidisciplinar. As pessoas conseguem perceber história, geografia, arte, literatura, mas não a história e cultura africana e afro-brasileira como uma dimensão do conhecimento que se aplica à saúde, à tecnologia, às ciências exatas e às ciências humanas. Essa colonialidade do pensamento com o qual esses professores foram formados é uma barreira. Mais de 300 docentes responderam. Esse material pode ser insumo para muitas pesquisas e artigos. Ainda não tivemos tempo suficiente para esmiuçar todos os elementos que apareceram porque houve outras duas etapas após a pesquisa, mas pretendemos aprofundar a análise do diagnóstico.
NMais da metade dos docentes declaram não tratar da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nos seus planos de aula. Quais explicações vocês encontraram para esses dados?
CAs explicações sempre circulam nos argumentos do “não sei”, “não tenho formação para” ou “não acho importante”. Os dois primeiros são utilizados principalmente por aqueles que entendem que devem promover esses temas. Os demais, uma parcela muito grande, dizem que não tratam desses conteúdos em seus planos de aula. E dizem isso com a tranquilidade de quem acredita que aquilo não é responsabilidade deles. Muitos respondem que não têm formação para isso. A formação continuada é mesmo extremamente necessária, mas estamos falando de professores que são essencialmente pesquisadores. Eles têm meios para buscar esse conhecimento. A nossa pesquisa questionou primeiro se os professores acessam a formação continuada, e a maioria respondeu que sim. A questão seguinte perguntava se acessam a formação continuada para as relações étnico-raciais. É quando se percebe a diminuição do número de pessoas que buscam. Ou seja, não deixam de ir atrás da formação continuada, mas de buscar a formação continuada em história e cultura africana, afro-brasileira e indígena. Há que se observar também que parte considerável daqueles que possuem alguma formação continuada a fez no próprio Instituto Federal. A instituição, portanto, tem responsabilidade em promover a formação continuada para as relações étnico-raciais.

NNo estágio atual, o que já dá para concluir?
CHá uma necessidade de formação continuada. O instituto já a oferece, mas isso tem de ser sistemático. A formação continuada para o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena precisa ser fortalecida e institucionalizada. Temos tensionado a instituição nesse sentido, a partir do Neabi. Precisamos entender também que essas formações podem ter naturezas diferentes para grupos de professores de áreas distintas. Fizemos uma grande formação e percebemos que, ao juntar os grupos de professores da engenharia, da linguagem, das ciências biológicas e da saúde, conseguimos fazer debates mais próximos. Os repertórios são diferentes e quando misturamos todos eles há uma troca, mas as dificuldades e as limitações dos professores da engenharia e das ciências exatas, em geral, são diferentes das apresentadas por aqueles das linguagens. Quando começamos a trazer experiências das outras áreas de conhecimento, algumas questões passaram a fazer sentido para esses profissionais. A sistemática da formação continuada numa instituição de ensino como os institutos federais precisa ter esse cuidado de pensar quais elementos podem ajudar a trazer os profissionais das áreas técnicas e tecnológicas para essa discussão. É preciso pensar a interdisciplinaridade e as questões curriculares. A existência da Lei nº 10.639 garante esse ensino institucionalmente, mas temos que desenvolver mecanismos que consigam transformar essa cultura escolar. No câmpus Hortolândia, conseguimos construir o Ubuntu Maker, um laboratório acessado pelos estudantes com os professores das áreas de mecânica, eletrônica, automação etc. Fizemos com que aquele local e suas ferramentas servissem à nossa proposta de construção de uma educação antirracista. Colocamos uma máquina de corte a laser para produzir, por exemplo, jogos da memória com adinkras [sistema de escrita, filosófico, histórico e cultural desenvolvido pelo povo akan, em Gana, na África; por extensão, grafismos dessa escrita usados em tecidos, logotipos e cerâmicas]. Pusemos a impressora 3D para imprimir ferramentas que simbolizam os orixás. A apropriação dos espaços da tecnologia é importante para fazer o resgate da memória e da história e para envolver profissionais que não entendiam o seu papel na luta antirracista.
NEm sua opinião, quão distantes estamos de uma educação plenamente antirracista?
CReconheço os avanços, mas ainda estamos longe porque essa mudança demanda uma sistemática muito profunda. Sem contar os currículos das escolas de educação infantil e de ensino fundamental, mesmo o currículo da pedagogia continua embranquecido. Ainda se formam professores nas graduações sem essa discussão ou fazendo-a de maneira superficial. Olhamos para o Instituto Federal e só vemos 17% de trabalhadores negros. Uma instituição que também forma professores. Enquanto os projetos político-pedagógicos das escolas não forem antirracistas, fica muito difícil avançar. Vejo isso até como uma autocrítica. Hoje, eu posso dizer que o câmpus Hortolândia é antirracista? Como diretora, devo fiscalizar, posso mobilizar ações e dialogar. Fui eleita com essa perspectiva. Tenho um ambiente com relações interpessoais antirracistas, mas eu preciso ter um currículo antirracista. Preciso de materiais e recursos pedagógicos que possibilitem essa construção. Não se desfaz uma cultura escolar de um momento para o outro. Temos práticas, algumas inclusive mais fundamentadas e profundas, mas ainda assim faltam diversos elementos para que a instituição seja efetivamente antirracista. Se as pessoas não estão dentro dessa coerência da educação das relações étnico-raciais, ainda não é possível se identificar como uma instituição de ensino antirracista. Precisamos avançar ainda mais.
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