Fátima Santana
Coordenadora pedagógica do Centro Municipal de Educação Infantil Dr. Djalma Ramos, escola com perspectiva antirracista em Lauro de Freitas (BA), e integrante da Rede de Etnoeducadores (Unirio)


Por Wallace Cardozo, Rede Galápagos, Salvador (BA)
A educação antirracista nunca esteve tanto em pauta como nos últimos anos. Cada vez mais, professores e gestores da educação demonstram interesse em abordar as questões raciais nas salas de aula. Algumas escolas se propõem a fazer do antirracismo a base de seus projetos político-pedagógicos. Esse é o caso do Centro Municipal de Educação Infantil Dr. Djalma Ramos, em Lauro de Freitas (BA).
Dentre vários projetos implementados pela instituição de ensino, alguns premiados e destacados dentro e fora do país, a escola recentemente lançou um livro escrito e ilustrado por 13 crianças. A atividade foi inspirada na prática das escrevivências, técnica de escrita protagonizada por pessoas negras proposta pela escritora Conceição Evaristo.
A unidade escolar conta com uma gestão coletiva, cuja coordenação pedagógica é ocupada por Fátima Santana. A educadora é mestra em ensino das relações étnico-raciais e esteve à frente do projeto Por uma Infância Escrevivente: Práticas de uma Educação Antirracista (Ceert). Foi ganhadora do Prêmio Arte na Escola Cidadã (2015) na categoria Educação Infantil e faz parte da Rede de Etnoeducadores (Unirio/RJ).
Fátima conversou com Notícias da Educação sobre a importância da educação antirracista e do trabalho colaborativo diante dos desafios do ensino público. E lembrou que pais e responsáveis não negros podem colaborar para a luta antirracista quando a família se insere na proposta pedagógica.
NNotícias da Educação — A que você atribui o maior interesse público pela educação antirracista nos últimos anos?
FFátima Santana — Sempre penso no próprio movimento negro e na trajetória das pessoas que vieram antes de nós. Outro ponto é esse reconhecimento das identidades. As pessoas passaram a afirmar mais a sua negritude. Um exemplo interessante: morei durante boa parte da minha vida no bairro da Liberdade, que era considerado o bairro mais negro de Salvador. À medida que as pessoas de toda a cidade foram se identificando cada vez mais como negras, o bairro perdeu o título. É um cenário diferente.
NQual a importância de falar de racismo desde cedo?
FConstruir, de fato, uma perspectiva do antirracismo. Nesse sentido, eu parto do pressuposto de que ninguém nasce racista, mas as crianças aprendem. Quando se estimulam desde cedo o reconhecimento, a importância do respeito à diferença e da não anulação do diferente, a diversidade… Acho que essa é a forma como podemos contribuir para uma sociedade que entenda que o racismo não pode existir.
NO que poderia ter sido diferente se você tivesse tido acesso a uma educação antirracista na infância?
FPrimeiramente, eu cresceria com orgulho de mim. É importante ver e reconhecer seu corpo, seu cabelo e seus iguais. Um dia desses, uma professora estava trabalhando um livro com as crianças, e a capa do livro tem um homem negro. As crianças diziam: “É o meu pai”. Elas se identificam e entendem que se é a professora ou alguém da escola que está trazendo essas imagens, deve ser alguém importante. Criança tem muito disso. Sempre penso também no que eu poderia ter me tornado. Amo a minha profissão, mas me pergunto quais habilidades deixaram de ser construídas por causa dessa exclusão social da população negra. Sempre fico observando as crianças, quanto são inteligentes e como essa potencialidade é suprimida por falta de acesso a uma educação qualificada. Vejo crianças aqui que são dançarinas natas, outras que se interessam por outras linguagens. Então, volto para a minha infância e penso no que eu poderia ter sido se tivesse tido a oportunidade de experimentar.
“O nosso trabalho só deu muito certo porque foi coletivo e irmanado. Os projetos não são de uma pessoa só. São uma proposta coletiva, de mulheres professoras, todas negras, que vão dando corpo e voz a esse trabalho.”
NVocê já foi a Cuba debater a educação e agora vai à Colômbia para falar sobre a experiência da produção do livro O sonho de Ayo, na V Bienal Latinoamericana y Caribeña en Primeras Infancias, Niñeces y Juventudes. Como está sua expectativa para essa experiência?
FIr a Cuba em 2019 foi uma experiência muito gratificante. Todos os professores deveriam ter a oportunidade de viver isso. Agora, na Colômbia, vamos para mais um evento onde poderemos entender um pouco de como a América Latina está pensando a questão da infância. Em Cuba, lembro que fui para uma escola que debatia a questão racial e eu era a pessoa que tinha um trabalho na educação infantil. Na Colômbia, já vamos debater sobre a infância e a juventude. Acho que entender como a infância está sendo pensada na América Latina é um ganho para a nossa escola. Vou junto com a professora Noêmia, que trabalha com bebês. Faremos duas apresentações. Em uma, apresentaremos o projeto “Por uma Infância Escrevivente: Práticas de uma Educação Antirracista”. A outra será uma mesa sobre o livro O sonho de Ayo — ficamos muito felizes em falar a respeito porque é um livro produzido por crianças.
NQuais os principais desafios de propor um modelo antirracista na educação pública?
FUm dos nossos desafios é dar visibilidade a essa proposta. Outro ponto é fazer com que o Poder Executivo entenda a importância desse trabalho. Se não fosse o investimento do edital, não teríamos metade dos materiais que há aqui na escola, essa diversidade de literatura africana e afro-brasileira, os tecidos, o material didático. Gostaríamos que a nossa unidade fosse uma escola de formação para outros professores, mas não conseguimos fazer isso. Tenho professoras aqui que fazem um trabalho muito interessante e eu gostaria que elas passassem adiante o que pensam pedagogicamente, que tivessem tempo para estudar mais e unir teoria e prática. Sonho com isso, mas o impedimento está no fato de que o Poder Executivo não entende a proposta e acaba não investindo. Parece que, quando o assunto é a questão racial, as iniciativas são mais minadas. Produzimos algo importante, validado pela sociedade com prêmios e outros reconhecimentos. Aí precisamos de mais recursos para trabalhar, para avançar ainda mais, e não conseguimos.
NQual a importância da coletividade para promover esse tipo de trabalho?
FO nosso trabalho só deu muito certo porque foi um trabalho coletivo e irmanado. Os projetos não são de uma pessoa só, da coordenadora Fátima. São uma proposta coletiva, de mulheres professoras, todas negras, que vão dando corpo e voz a esse trabalho. Por isso nos autorizamos a dizer que talvez a nossa escola seja pioneira em um trabalho coletivo voltado para a educação antirracista, desde o berçário até a pré-escola. Nos reconhecemos, logo quando chegamos aqui, dentro dessa proposta de enegrecer o currículo. Por isso que deu muito certo. Ultrapassamos os limites da escola, conhecemos as nossas famílias, frequentamos as casas umas das outras. Acho que isso tem a ver com esse nosso modo preto de fazer as coisas, de se aquilombar e de cuidar um do outro. Por isso, também, que o trabalho deu tão certo, porque é coletivo.
NSe no ensino superior a maioria dos professores é de homens brancos, a educação infantil é majoritariamente ministrada por mulheres negras. Entretanto, a educação antirracista não é um modelo predominante. Por que vocês resolveram comprar essa briga?
FA Lei nº 10.639 existe há algum tempo, mas a raça para nós não é uma questão de lei. Perpassa nossos corpos. Foi algo muito orgânico, vindo das nossas histórias de vida. A maioria das professoras da minha geração aqui na escola conviveu com problemas de alcoolismo na família. Nesse diálogo, vimos que essas histórias se completavam ou eram muito parecidas.
O início da história da educação infantil, infelizmente, é marcado por uma política de assistencialismo e só depois há o reconhecimento de uma perspectiva mais educacional. Nesse sentido, a escola pública sofre uma desvalorização, e são exatamente as mulheres negras que estão na educação infantil. Até no recorte da própria educação básica, o que é mais precarizado é a educação infantil.
“Desejo ver uma sociedade que respeite as diferenças, em que as nossas crianças sejam o que quiserem. Que o direito de ser e de existir não seja cerceado — e que as nossas crianças, sobretudo as pretas, tenham o direito de viver essa experiência tão sonhada da felicidade.”
NQuais eram as suas referências quando criança?
FEra complexo porque eu vivia duas questões ao mesmo tempo. Eu morava na Liberdade, perto do bairro do Curuzu, então via o Ilê Aiyê mostrando toda a potencialidade de ser uma pessoa negra. Lembro também que o meu pai gostava de ouvir Agnaldo Timóteo e outros homens negros. Gosto dessa sonoridade até hoje graças a essa experiência. Por outro lado, as referências brancas já dominavam. Lembro de chegar da escola correndo para assistir ao programa da Xuxa. Lembro dos dias de escolher as paquitas… Então, eu vivi essa dualidade. Ao mesmo tempo que eu via a beleza do Ilê Aiyê, eu a “desvia”.
NComo pais e responsáveis não negros podem colaborar para a luta antirracista?
FA família colabora quando se insere na proposta pedagógica, porque a questão racial não é um problema das pessoas negras. É preciso conhecer a história. Viemos de uma educação eurocêntrica, e decolonizar é um processo bem complexo, até aqui dentro da escola. Por isso, é necessário ampliar essa formação em casa. Livros como Amoras, de Emicida, não são só para as crianças negras.
NQual a educação que você sonha ver?
FQue pergunta difícil… Sou muito sonhadora. Lembrando de Martin Luther King Jr, eu tenho um sonho, o nosso sonho. Desejo ver uma sociedade que respeite as diferenças, em que as nossas crianças sejam o que quiserem. Que o direito de ser e de existir não seja cerceado — e que as nossas crianças, sobretudo as pretas, tenham o direito de viver essa experiência tão sonhada da felicidade.
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