Eliane Schlemmer
Professora, doutora e líder do Grupo Internacional de Pesquisa Educação Digital da Unisinos/CNPq


Por Maggi Krause, Rede Galápagos, São Paulo
Os desafios que um videogame impõem tem o potencial de aguçar muito mais a curiosidade e a motivação para aprender de crianças e adolescentes do que a tradicional rotina escolar nos anos finais do ensino fundamental, comumente compartimentada em disciplinas isoladas e fazendo pouco sentido para a realidade dos estudantes. Diante desse fato, Eliane Schlemmer sempre se questionava: por que, então, as novas tecnologias não eram mais bem aproveitadas na escola? Formada no magistério e depois em análise de sistemas, pela Unisinos, ela fez mestrado em psicologia do desenvolvimento e doutorado em informática na educação, ambos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Sempre me considerei uma professora inquieta da educação básica, preocupada com a questão da aprendizagem dos alunos, querendo saber como as tecnologias poderiam potencializar essa aprendizagem.”
Professora-pesquisadora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada na Unisinos e líder do Grupo Internacional de Pesquisa Educação Digital – GPe-dU Unisinos/CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ela coordenou a pesquisa “A cidade como espaço de aprendizagem: práticas pedagógicas inovadoras para a promoção da cidadania e o desenvolvimento social sustentável”, um dos 14 projetos contemplados pelo edital “Anos finais do ensino fundamental: adolescências, qualidade e equidade na escola pública”.
Com metodologias e práticas pedagógicas que se apropriam da cidade enquanto lugar para a aprendizagem e utilizam uma série de recursos e ferramentas digitais, o conceito de “cibricidade” se efetivou em projetos realizados na Emef (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Santa Marta e na João Belchior Marques Goulart, do município de São Leopoldo (RS). O financiamento do Itaú Social permitiu a cada escola estruturar um laboratório com televisão, computadores, kit de arduino, impressora e óculos 3D, que possibilitaram desenvolver melhor as iniciativas inventivas dos estudantes. “A relação do sujeito com a cidade e o seu deslocamento no espaço físico passam a ocorrer também por ‘deslocamento’ no espaço digital, o que envolve uma infinidade de possibilidades tecnológicas, em rede, tais como plataformas e aplicativos”, explica Eliane. Entenda melhor os conceitos criados por essa especialista multidisciplinar, como aconteceram os projetos nas escolas, a formação de professores e os desdobramentos da pesquisa na entrevista a seguir.
NNotícias da Educação — Pode explicar o conceito de “cibricidade”, que você defende como espaço de aprendizagem?
EEliane Schlemmer — Cibricidade é essa cidade híbrida em que o espaço físico se amplia para o digital. Ela acontece a partir de diferentes realidades. A realidade aumentada amplia a experiência do humano, porque insere a informação digital no espaço físico. E a realidade virtual possibilita um ambiente simulado dentro do computador. Resumindo, a cibricidade não é apenas o espaço geográfico pelo qual se transita, mas sim um composto de tudo o que faz parte, se potencializa ou se amplia no digital.
NE educação OnLIFE, outro conceito que você costuma usar, o que significa?
EÉ uma educação ligada, conectada (On) na vida (LIFE). Nela, os processos de ensino e de aprendizagem emergem das problematizações do mundo, no contexto presente. Investir nesse tipo de educação exige metodologias e práticas pedagógicas inventivas, que trabalhem com a invenção de problemas e não somente com a resolução de problemas. E, claro, por isso mesmo, demanda formação docente.
NComo surgiu a ideia de relacionar cidade, tecnologia e aprendizagem?
EPrimeiro observei que as crianças não circulavam mais e não se apropriavam da cidade, que parecia muito longe delas — tanto dos estudantes de classe econômica mais favorecida quanto dos da escola pública. De modo diferente da minha infância em Realeza, uma cidade pequena no Paraná, rua, calçada, praça e parque já não são mais lugares seguros para a criança frequentar. Então o meu interesse era compreender qual seria um motivador inicial para ela se relacionar com a cidade, ao mesmo tempo que me questionava se as TiCs [tecnologias da informação e comunicação] estavam presentes na escola e, se não estavam, por que não? Afinal, as crianças já trabalhavam com Minecraft e em 2015, motivada por uma ex-aluna minha da pedagogia, desenvolvemos um app, o Obsidian Cat (a obsidiana é uma rocha do Minecraft, que envolve o metaverso), em uma escola pública em São Leopoldo. Nesse projeto, construímos uma narrativa atraente em que um portal explode e diferentes pedaços de obsidiana se espalham pela cidade. Então, por meio de aplicativo em realidade aumentada, um grupo de crianças construía desafios para o outro a partir dos locais e recriava esses espaços dentro do Minecraft. Os alunos saíam com tablets pela cidade para cumprir os desafios, isso antes da febre do Pokémon Go.
NQuais foram as ferramentas tecnológicas usadas e como acontece um projeto de aprendizagem gamificado (PAG)?
EUsamos Google Maps, Google Earth, Minecraft, Blocks, Genially, realidade aumentada com metaverso, produção de vídeos. Mas as tecnologias não são o que define um projeto; o que define é a gente entender a maneira como as pessoas aprendem e quais são as tecnologias que nos ajudam nesse processo. Trabalhamos nas duas escolas de maior vulnerabilidade social da Vila Brás, em São Leopoldo. Vou dar como exemplo o projeto Teen Community — que teve início em 2016 e seguiu até 2021. Os estudantes foram ao museu para saber como surgiu o bairro e a escola, modelaram a vila no programa Blender, imprimiram a escola em 3D e construíram um game, em parceria com os estudantes da graduação em jogos digitais da Unisinos. Como o projeto era interdisciplinar, o professor de língua portuguesa ajudava com a narrativa, o de artes nas modelagens, o de matemática com os programas e o de história com conhecimentos sobre o município. O projeto foi premiado com o primeiro lugar na Mostra de Tecnologia do Município e o envolvimento no game impacta a relação dos alunos com a escola e o entorno. Alguns adolescentes que concluíam o 9º ano voltavam para ajudar quem estava entrando no Teen Community e uma parcela foi cursar computação no Instituto Federal depois de se formar.
“As tecnologias não são o que define um projeto; o que define é a gente entender a maneira como as pessoas aprendem e quais são as tecnologias que nos ajudam nesse processo.”
NCom tanta inovação por meio de recursos digitais nas últimas décadas, como considera que o professor tem se relacionado com as novas tecnologias e as tem aproveitado?
EA escola vem perdendo sentido para essa geração do Minecraft e dos games, já que os estudantes aprendem, acessam a informação e o conteúdo e produzem conhecimento de outra forma. Mesmo com a pandemia, notamos que todas as tecnologias que permitem trabalhar de forma expositiva (Meet, Teams, Zoom) se desenvolveram de forma exponencial, ou seja, os professores, sem inovar nas metodologias e nas práticas, muitas vezes reproduziram o ensino frontal. Eu defendo a educação em rede, que não tem centro, ou seja, não depende de dar centralidade ao aluno, mas demanda construir espaços de aprendizagem onde os professores possam vivenciar outras metodologias e práticas. É preciso que se trabalhem essas competências da rede que emergem de um entrelaçamento da área de conhecimento, da didática e das questões específicas do digital. Por causa da pandemia, podemos considerar que uma entidade não humana — o vírus — nos paralisou dentro de casa e modificou todos os processos. E que foi outra entidade não humana — a tecnologia digital — que nos permitiu continuar trabalhando, aprendendo, conversando… Isso nos desafia a repensar nossa visão antropocêntrica.
NPode explicar a importância da tecnologia como motivador para a aprendizagem?
EPara a geração que nasceu após a internet, o mundo sempre foi híbrido, on-line e off-line, mas a educação que ela vivencia na escola ainda não é assim. Cada vez mais o mundo físico, o biológico e o digital estão se hibridizando. Existe o conceito de infovíduo, que é o indivíduo ligado a uma rede de dados e infinitos fluxos de informação, cunhado pelo professor Massimo di Felice, da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Esse indivíduo se amplia graças à digitalização e à possibilidade de navegar nas diferentes redes. A tecnologia, nos últimos anos, mudou quem somos, como nos relacionamos uns com os outros, a percepção que temos do mundo e a forma como nos relacionamos com ele. O mundo também é percebido a partir das várias possibilidades digitais. No caso do projeto cibricidade, as crianças passaram a se relacionar com a cidade pelo Google Earth, pelo Google Maps e pelos sites dos museus. Além disso, tiveram liberdade no uso de recursos digitais para pesquisar, organizar, produzir e transmitir novos conhecimentos.
“A tecnologia mudou quem somos, como nos relacionamos uns com os outros, a percepção que temos do mundo e a forma como nos relacionamos com ele.”
NO que é preciso reorganizar na escola para que a educação faça sentido para os estudantes dos anos finais do ensino fundamental?
EAcho que o edital de pesquisa do Itaú Social e da Fundação Carlos Chagas chamou a atenção para essa etapa, que nos pede um olhar cuidadoso. É preciso tentar, sobretudo, repensar o currículo para que se trabalhem as disciplinas de forma que não sejam isoladas uma da outra. Outra questão é a articulação com a comunidade, que considero fundamental para propiciar uma educação que seja sustentável. Para além dos ODS da Unesco, a educação sustentável é aquela que oferece significados para essa geração que constrói e aprende de outra forma. Depois da pandemia, ficou ainda mais evidente o fato de que o ensino tradicional não motiva mais. E não dá para voltar atrás no uso das tecnologias, como se tenta ao banir o celular da sala de aula. Deveríamos pensar em erguer, nos próximos cinco anos, um sistema mais inovativo da educação. Para isso, elaboramos diretrizes para um plano nacional de transição digital que segue a proposta de uma educação híbrida, uma educação OnLIFE, ligada e conectada com a vida.
Para efetivar a transição digital da educação
Como recomendação para as políticas públicas educacionais, com base na experiência da pesquisa, foram enumeradas as dimensões necessárias que orientam estratégias e ações para uma transição digital bem-sucedida nos anos finais do ensino fundamental. São elas:
1) Dimensão tecnológica: infraestrutura (equipamentos) e de conectividade (rede)
2) Dimensão organizacional: formação de gestores
3) Dimensão pedagógica: formação docente
4) Dimensão digital: ambientes e plataformas digitais
5) Dimensão de entidades da sociedade: públicas e privadas
6) Dimensão das redes internacionais
NQuais são os passos para quem quer instituir esse tipo de prática inovadora nas escolas de anos finais?
EConstruímos uma Biblioteca Viva, um espaço aberto, onde qualquer professor pode acompanhar e ver como se desenvolveu o projeto. Essa biblioteca é como se fosse um repositório que pode inspirar as pessoas a produzir seus próprios projetos gamificados e também a construir processos formativos para professores. Nosso projeto rendeu muita produção científica e, para quem é da área de pesquisa, também dá pistas sobre como articular os pesquisadores da universidade com os atores da educação básica (veja no Para Saber Mais).
NQuais foram os resultados finais da pesquisa?
EEntre os principais resultados e conclusões, destaco as inovações promovidas para a formação dos professores, como a criação e o desenvolvimento do programa formativo “Educação OnLIFE: a cidade/cibricidade como espaço de aprendizagem”; a elaboração das 5D’FD (Cinco Dimensões da Formação Docente) e o uso das metodologias inventivas — como por exemplo os PAGs (Projetos de Aprendizagem Gamificados) pelos professores, que resultaram em protagonismo dos alunos e consequente diminuição da evasão, pelo menos na fase anterior à pandemia. E também a Biblioteca Viva, que registrou as diferentes práticas pedagógicas inventivas, intervencionistas e gamificadas.
NComo foi a formação dos gestores e professores nos projetos envolvendo a cibricidade?
EA formação docente aconteceu durante o desenvolvimento dos projetos, de modo contínuo. Trabalhamos nas metodologias e nas práticas inventivas e numa proposta de games for change, a apropriação de jogos para transformação social. Antes da pandemia, aconteciam encontros presenciais na Unisinos e nas escolas e também digitais. Depois, em 2020, o processo foi reconfigurado, potencializamos o grupo de Whatsapp Ubuntu e uma comunidade de professores dentro do Google Class. Ao todo, foram impactados 103 professores e gestores. Em paralelo, desenvolvemos o movimento de escutações, vinculado à Rede Internacional de Educação OnLIFE (RIEOnLIFE), criada junto com a Universidade Aberta de Portugal, cujo objetivo era escutar os diferentes estados brasileiros, sempre com um representante da Undime, um da secretaria estadual e um pesquisador da universidade, para entender como estava sendo desenvolvida a educação digital em rede durante a pandemia. Entre 2020 e 2021 ouvimos todos os estados e o Distrito Federal. Num movimento ampliado, foi criada uma plataforma de Educação OnLIFE (acesse aqui: RIEOnLIFE), que conecta pesquisadores, gestores, professores e estudantes para configurar um novo ecossistema conectivo de inovação na educação.
As 5 dimensões da formação docente
1 – A dimensão do professor, enquanto sujeito da aprendizagem
2 – A prática pedagógica
3 – A sistematização do conhecimento
4 – O compartilhamento entre os pares
5 – A dimensão ecossistêmica (envolve articulação com outras instituições e com outros espaços da cidade como museus, universidades, secretarias de Meio Ambiente e Cultura)
Segundo Eliane, todas essas dimensões precisam estar presentes na formação dos professores. Não se pode trabalhar as competências didático-específicas e digitais sem que elas estejam articuladas com as competências fundamentais para o século 21, como a colaboração, a criatividade, a comunicação, o pensamento crítico e a resolução de problemas.
Saiba mais
- “A ‘cibricidade’ como espaço de ensino e de aprendizagem” — Artigo de Eliane Schlemmer no Nexo Jornal
- A cibricidade como espaço de aprendizagem — Apresentação sobre o trabalho que abre vários outros links para projetos, eventos, artigos e outros subprodutos da prática pedagógica e da pesquisa
- Pesquisa investiga método que torna a cidade um ambiente de ensino para crianças e adolescentes no site Itaú Social Notícias
- Websérie Educação OnLIFE na Educação Básica — Composta de sete episódios, a produção compartilha as práticas pedagógicas vivenciadas pelos participantes durante o segundo semestre de 2021, além de explicar o conceito de cibricidade
- Biblioteca Viva Ecológica Reticular — Ferramenta com a proposta de qualificar a catalogação colaborativa e disponibilizar os acervos para os moradores do território