

Por Paula Salas, Rede Galápagos, São Paulo
A primeira imagem que salta aos olhos é a senhora que parece ter saído de um livro — ou melhor, do Sítio do Picapau Amarelo, história criada pelo autor brasileiro Monteiro Lobato. Ela está sentada, usa um vestido florido abaixo do joelho com mangas na altura do cotovelo e um avental branco amarrado na cintura. O cabelo, preso, é coberto por um lenço branco. Diante dela, um grupo de crianças, com idade entre quatro e seis anos, que estão absortas com a sua voz. Ela segura um livro. Se ampliarmos o olhar, podemos confirmar que estamos em uma biblioteca, cercados de estantes brancas de metal que organizam centenas de livros. Trata-se de um evento do projeto Vovó Conta Histórias, iniciativa da Secretaria Municipal de Educação de Itanhém, em São Paulo.
Há 23 anos, Isabel Christina Gigante de Ponte trabalha cercada de livros. “A minha prioridade é o incentivo à leitura”, explica. Enquanto trabalhava em uma biblioteca pública, conheceu Lya Deluqui Vasquez. A senhora, que era uma leitora assídua, um dia contou que era contadora de histórias em São Paulo. Elas se tornaram amigas, mas depois de um tempo perderam contato.
Durante uma visita à Secretaria de Educação, Isabel conheceu a sala de leitura que servia como um lugar para receber os professores e encontrar livros voltados para a prática pedagógica. “Na biblioteca [onde trabalhava na época] eu ficaria sentada consertando livros, mas fazer só isso para mim não era interessante. Então, pedi transferência”, diz Isabel. Ao assumir o espaço, despertou o desejo de dar outra vida à sala.
Enquanto pensava no que fazer, ela se lembrou de Lya e quis trazê-la para fazer mediação de leituras. “Um dia, passeando pelo centro, eu a encontrei. Contei que havia criado um projeto pensando nela”, explica a bibliotecária. O projeto a que ela se refere é o Vovó Conta Histórias. A iniciativa se tornou rapidamente um sucesso na rede municipal de ensino. Um dos objetivos era aproximar as crianças da leitura e do universo literário. “Queria também estimular o respeito aos idosos e o resgate do hábito de contar histórias na família, que é algo que eu tive quando era criança”, explica a educadora.
O que era antes uma sala de leitura, com um acervo de mil livros voltados para a capacitação de professores, tornou-se a Biblioteca Harry Forssell. O espaço repaginado tornou-se acolhedor com espaços para sentar e aproveitar mais de 6 mil livros, revistas e gibis. É possível pegar livros emprestados e participar de oficinas e exposições temáticas.
O nascimento de Dona Benta
Durante cinco anos, Lya fez leituras de duas a três vezes por mês. No entanto, a senhora, que na época tinha mais de 90 anos, não pôde continuar viajando com essa frequência. Sem querer interromper o projeto que já colhia bons frutos, Isabel assumiu o lugar de sua amiga.

Quando se viu diante desse desafio, Isabel resgatou lembranças de sua infância. “Sou apaixonada pela literatura de Monteiro Lobato e minha avó era uma contadora de causos”, relata. Essas duas referências serviram de inspiração para ela se transformar na Dona Benta, conhecida personagem da literatura infantil. A educadora mandou trazer a roupa que utiliza em suas mediações de leitura, inspirada na figura do Sítio do Picapau Amarelo e acrescentou um lenço branco que era usado por sua avó. “As crianças realmente acreditam que é a Dona Benta e elas precisam desse imaginário”, explica.
Como lidar com obras controversas?
Como esta reportagem traz a história de uma prática de mediação de leitura inspirada na literatura infantil de Monteiro Lobato, vale a pena considerar a discussão a respeito de obras que fazem parte do cânone literário e trazem mensagens inadequadas ou mesmo racistas. Esse tema é tratado com maior detalhamento no episódio do podcast Como começar sobre Monteiro Lobato, com a participação de Heloisa Pires Lima, autora de livros infantis e pesquisadora de questões raciais envolvendo a obra do autor. A temporada especial do podcast Como Começar, com a temática literatura infantil — produzida pelo jornal Nexo com apoio do Itaú Social —, tem o objetivo de estimular a formação de leitores na infância e ampliar a discussão sobre livros para crianças entre pais, mães, familiares e a comunidade educadora.
Ela também mescla estratégias que absorveu observando Lya e aquilo que aprendeu em capacitações sobre rodas de leitura. “É uma atividade cativante, encantadora, multiplicadora”, diz Márcia Alves, secretária municipal de Educação de Itanhém.
Isabel utiliza diversos livros durante essas leituras, e a escolha é baseada na faixa etária do grupo. Um dos queridinhos das crianças é o Sumaúma, mãe das árvores: uma história da floresta amazônica, de Lynne Cherry.
Enquanto lê, Dona Benta se apoia em painéis que servem de cenário da história e em uma caixa com as personagens. “São elaborados pela Isabel utilizando EVA e tecido TNT”, diz. No caso de Sumaúma, ela tem uma árvore na qual vai colocando as personagens conforme a história vai se desenrolando.
A inspiração desses materiais de apoio também veio da história de Monteiro Lobato. “Só eu lendo seria cansativo para as crianças. Lembrei que no Sítio do Picapau Amarelo, quando Dona Benta começava a narrar histórias, as personagens iam aparecendo”, compartilha.
O sucesso do projeto, que já dura dez anos, pode ser comprovado pela alta demanda pelas mediações em diferentes espaços, escolas e públicos da cidade. “As crianças interagem e no final vão felizes para casa. Saem fazendo perguntas e procurando livros. A leitura é a base do desenvolvimento delas, da escrita e da imaginação”, afirma Isabel. “O que percebemos é que quem participa chega à escola e pede para pegar livros emprestados. É uma sementinha que plantamos e a escola continua estimulando”, complementa Márcia.
O desejo da rede de ensino é compartilhar o fazer de Isabel com outros professores. “Temos professoras que se tornaram multiplicadoras. A dona Isabel se aposentará daqui a pouco e vamos precisar de outras ‘Isabéis’. O projeto não pode acabar; então precisamos contagiar outros”, afirma a secretária. Hoje, Isabel já conta com duas parceiras: as professoras Juvanete Braga e Ana Maria Ferreira.
Para mediar leituras que engajem as crianças
- Esteja atento à faixa etária das crianças para planejar a mediação e o livro escolhido.
- Crie elementos que chamem a atenção das crianças. Isso pode ser na forma de painéis, bonecos, fantoches, dedais, entre outros.
- Convide os pais e responsáveis para participar. Essa é uma forma de também incentivar que eles deem continuidade a esse trabalho em casa — seja com a leitura de livros que as crianças podem retirar na biblioteca da escola, seja com mediação de leituras em família.
Apoio das famílias
Especialmente no cenário atual, de enfrentamento dos diversos impactos deixados pela pandemia, a leitura e projetos como o Vovó Conta Histórias se tornaram uma válvula de escape. “As pessoas estão carentes, irritadas, sem paciência, adoecidas. Elas precisam desse momento de aconchego, respeito, carinho. Não podemos perder essa sensibilidade, acolhimento”, destaca a secretária Márcia, que é parceira do Programa Melhoria da Educação, iniciativa do Itaú Social que proporciona formação continuada para gestores educacionais.
Outra iniciativa, pensada para apoiar as necessidades dos alunos e suas famílias, são a busca ativa e os esforços para garantir as condições para a permanência de todos os alunos na escola. “Estamos vendo um avanço significativo na rede municipal de ensino mesmo com a pandemia. Entendemos que devemos olhar para as pessoas de forma integral. Há momentos de fragilidade em que temos de acolher para seguir juntos”, partilha a secretária de Educação de Itanhém.
Saiba mais
- Programa Leia com uma Criança
- Novo episódio do podcast Leia com uma Criança destaca o uso das cores na narrativa literária
- Curso Infâncias e Leituras
- Percurso Leitura e escrita
- Fórum Intersetorial da Busca Ativa Escolar
- Programa Melhoria da Educação