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Dez perguntas para

“A boa literatura infantil não mente para as crianças”

Autora acredita na literatura como um espaço protegido para as crianças e jovens vivenciarem emoções, conhecerem outras vidas e se inspirarem a querer saber mais


Dez perguntas para
Janaina Tokitaka
Escritora, ilustradora e roteirista, autora do livro Pedro vira porco-espinho, um dos títulos escolhidos pelo programa Leia com uma criança em 2018

A autora e ilustradora Janaina Tokitaka: “A criança precisa se ver representada, não pode ser algo abstrato. É preciso criarmos histórias nas quais a criança vê uma família como a sua, um cotidiano como o seu”. Foto: Arquivo pessoal

Por Livia Piccolo, Rede Galápagos, São Paulo

Janaina Tokitaka é autora, ilustradora e roteirista. Escreve e pensa narrativas para crianças e jovens há mais de uma década, sempre levando em conta os debates sobre diversidade, tão fundamentais nos dias de hoje. “Eu me entendo como uma mulher não branca, amarela, e diversidade sempre foi importante para mim, não é algo imposto de fora.” Seu livro Pedro vira porco-espinho foi uma das obras contempladas pelo programa Leia com uma criança, do Itaú Social, em 2018. A outra foi Quero colo, dos autores Stela Barbieri e Fernando Vilela. “O programa fez o livro chegar a lugares que ele jamais alcançaria de outra maneira”, conta Janaína. 

A artista acredita na literatura como um espaço protegido para as crianças e jovens vivenciarem emoções e conhecerem outras vidas. “A boa literatura infantil gera movimento, curiosidade, afeta a criança e a inspira a querer saber mais.” Nesta entrevista, Janaina Tokitaka compartilha um pouco do seu percurso e fala sobre o potencial dos livros infantis. 

NNotícias da Educação — Como começou sua história com a literatura infantil?

JJanaina Tokitaka — Acho que minha história é parecida com a de 90% dos autores e ilustradores de livros infantis: eu era uma criança solitária, um tanto melancólica, que gostava muito de livros. Eu não vim de uma família superprivilegiada, meus avós eram da classe operária e meu avô por parte de mãe amava literatura. Ele adorava Os três mosqueteiros, clássico de Alexandre Dumas, e valorizava muito a literatura. Ele tinha aquela coleção de livros clássicos encadernados em vermelho; sempre foi da cultura da família valorizar a literatura. Mas já ouvi de algumas autoras que é preciso desmontar essa história oficial dos autores como leitores precoces. Muitas dizem que não foram crianças que liam, que descobriram a literatura tempos depois. Acho isso importante também, porque essa criança meio adulta, superimersa no mundo dos livros, não é o único autor em potencial. Esse mito de origem é um pouco complicado quando pensamos em vivências mais democráticas e outros jeitos de ser autor e ilustrador.

NDurante a infância, de que maneira a literatura ajudava você?

JSempre fui muito fascinada por pessoas e por vidas internas, por investigar o que move o outro. E a literatura sempre foi o espaço perfeito para isso, onde eu sentia que podia exercer esse fascínio de conhecer o outro sem precisar conversar de fato, já que eu era ansiosa e solitária. Os livros eram um espaço protegido para eu conhecer as pessoas e o mundo. Eu passava o recreio na biblioteca e pegava sempre o máximo de livros que podia. Cogitei inclusive até roubar alguns livros, uma história comum entre os apaixonados por literatura.

“Os educadores parentais falam disso, de se abaixar e ficar na altura da criança quando queremos dizer alguma coisa importante para elas. Acredito nessa mesma lógica para a literatura.”

NComo você se tornou autora de literatura infantil?

JAcho que não foi tanto uma decisão. Esse é o tipo de escrita que gosto de fazer porque tenho uma memória do que é ser uma criança com um vínculo de leitura muito real. Tem um problema de quem quer escrever para a criança que é a idealização dela. Algumas pessoas idealizam a criança e não se lembram do que é ter medo de verdade quando você é criança, não se lembram do que é ficar angustiado, dos momentos de tristeza. A infância fica representada como um lugar idealizado, lindo, cheio de imaginação e tal. Mas desse jeito é difícil afetar a criança leitora porque ela tende a não acreditar na história.

NOu seja, para escrever literatura infantil é preciso se colocar no lugar da criança?

JQuem acompanha e observa as crianças, convive com elas diariamente, percebe quando o autor está escrevendo “de cima”. E na hora a criança saca isso e rejeita o livro. Os bons autores de literatura infantil são aqueles que têm a lembrança da infância vivida; é preciso se  abaixar para falar com a criança na altura dela. Os educadores parentais falam disso, de se abaixar e ficar na altura da criança quando queremos dizer alguma coisa importante para elas. Acredito nessa mesma lógica para a literatura. E sem ser chato nem mentir para elas. O Maurice Sendak falava que se recusava a mentir para as crianças porque quando ele era criança ele odiava que mentissem para ele. Então não podemos mentir para elas, mantendo a adequação à idade, claro.

NVocê publicou quase 50 livros. Continua produzindo muito?

JEstou tentando publicar menos. Depois que minha filha nasceu, a Rosa, o tempo ficou mais escasso, e quero fazer valer o tempo. Não me interessa me pautar pela quantidade. Quero contar menos histórias e trabalhar histórias que me interessem mais. Também sou roteirista e os tempos são complicados. Às vezes passamos oito horas em sala de roteiro, e tentar encaixar os livros na rotina é difícil. Procuro me angustiar menos com a questão de não ter lançado nada este ano. É algo com que muitos autores se preocupam e é compreensível.

NComo surge o impulso para uma nova história?

JTodo mundo tem pontos fortes e fracos. Coisas que você sabe fazer bem; outras, nem tanto. Meu forte é ter muitas ideias. Em sala de roteiro, por exemplo, isso é muito bem-vindo. Eu não tenho dificuldade para ter ideias, tenho mais dificuldade para depurar quais valem a pena. Meu norte para saber se uma ideia vale a pena é quando ela fica voltando, reaparecendo, a ponto de incomodar. Quando estou tomando banho e o personagem pipoca na minha cabeça, de novo. É preciso realmente acreditar que uma ideia vale a pena para gastar tempo nela. A literatura não paga as contas, a rotina é corrida; então, parar para escrever um livro demanda bastante. 

“Em um bom livro infantil não pode faltar curiosidade, algo que desperte nas crianças o impulso da pergunta, do movimento. É preciso criar movimento interno na criança.”

NComo foi a experiência do Pedro vira porco-espinho ter sido selecionado pelo programa Leia com uma criança, do Itaú Social?

JFoi um grande privilégio, pois o livro alcançou milhões de famílias. O Pedro chegou a leitores que eu jamais alcançaria de outra forma e muitos me procuraram para falar da experiência. Pessoas de todos os estados do Brasil. O livro foi distribuído para lugares distantes
dos grandes centros, lugares longínquos a que os livros normalmente não chegam; ainda existem muitos problemas de distribuição no país. Famílias vieram comentar comigo sobre a experiência de leitura, pais e mães me enviaram fotos e vídeos da criança no colo, manuseando o livro. Isso é muito emocionante e compensa tudo. Porque eu crio um livro para ser compartilhado, para integrar a história de vida de alguém. Pedro vira porco-espinho foi o primeiro livro na vida de algumas crianças, e isso é incrível. Fora que o tema, para mim, é muito importante. É uma história sobre emoção, na qual as crianças entendem que muitas vezes ficarão irritadas e não vão gostar do que está acontecendo. E isso faz parte da vida.

Ilustração da obra Pedro vira porco-espinho. Imagem: Arquivo pessoal

NQuando você está criando um livro, leva em conta a importância da diversidade de raça, classe e gênero?

JSim, muito. Diversidade sempre foi importante para mim. A maneira como essas questões aparecem nos livros é a maneira como elas aparecem na minha vida. Na pandemia de Covid-19 foi a primeira vez que sofri xenofobia escancarada. Sempre me entendi como mulher não branca, amarela, bissexual. Há muito tempo venho me percebendo nesse percurso. Eu entendo, também, que meu lugar de mulher amarela é de privilégio, claro. No começo da pandemia, naquele momento em que estávamos trancados em casa, hospitais abarrotados, veio uma pessoa recolher assinatura para um edital de que eu fazia parte. Pedi à pessoa que colocasse a máscara e ela disse:  “Vocês que trouxeram essa doença para o Brasil e eu que tenho que colocar a máscara?!”. E a Rosa, minha filha, estava ao meu lado e perguntou sobre o que a pessoa estava falando. Como explicar tudo isso para uma criança? Não é fácil pensar em como discutir determinados temas com as crianças. Quando decido colocar uma personagem negra em alguma história, penso várias vezes, converso com pessoas negras para me informar melhor, reflito bastante para não fazer nenhuma burrada. E pode ser que um dia eu faça uma besteira e aprenda com isso, e tudo bem.

Experimentando diferentes traços e materiais. Foto: Arquivo pessoal

NQuais são suas principais referências como artista?

JWilliam Morris, o grande fundador do movimento Arts & Crafts, do século 19, na Inglaterra, me inspira muito. De forma resumida, ele defendia que a boa arte deve estar na cortina, na estampa do sofá, no bule de chá. Na embalagem do biscoito. Ela deve fazer um bem cotidiano. A arte não é aquele momento separado da vida, de contemplação plácida. Acredito na possibilidade da boa arte para muita gente. Ele também trabalhou com os folk tales, os contos populares. Aqui no Brasil, o Movimento Armorial, de Ariano Suassuna, conversa um pouco com tudo isso. William Morris foi um grande designer que acreditava na qualidade do popular e nos processos artesanais e manufaturados. Ele é o santo padroeiro de vários ilustradores. Na literatura propriamente dita tive a sorte de ter convivido com a Elvira Vigna, a Angela Lago e a Heloisa Prieto, autoras e pessoas que foram e são referências para mim. De certa forma elas me ensinaram a como me portar como uma mulher autora, como pesquisar, como ter uma autoestima saudável, pé no chão. Trata-se de mulheres incríveis que foram, de certa maneira, tutoras para mim. Fui convidada para ir à Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) muito jovem, fiquei supernervosa, e a Elvira me ajudou muito. 

NO que não pode faltar em um bom livro infantil?

JQualidade. Uma boa imagem e um bom texto têm um papel formativo, não pode ser qualquer coisa. Também não pode faltar verdade; o autor não pode mentir para a criança. O Pedro vira porco-espinho fala uma grande verdade do mundo das crianças, que ninguém conversa com elas. Também não pode faltar curiosidade, algo que desperte nelas o impulso da pergunta, do movimento. É preciso criar movimento interno na criança. Quando a história é muito contemplativa, tranquila, acho que não funciona. E o livro precisa de bons personagens; pode ser um pato, uma menina, uma cadeira. Bons personagens fazem muita diferença. O livro é um primeiro ambiente seguro para a criança lidar com a angústia e com a alteridade, e bons personagens permitem isso. Para as crianças pequenas, a representação do cotidiano é importante. A criança precisa se ver representada, não pode ser algo abstrato. É preciso criarmos histórias nas quais a criança vê uma família como a sua, um cotidiano como o seu. Milhares de famílias têm mãe solo, e precisamos de livros assim. A criança precisa sentir que a sua família, seu cotidiano e sua vida são dignos de estar em um livro.

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