

Por Giselly Corrêa Barata, Rede Galápagos, Fortaleza (CE)
— Cê-a-ene-ô-a, canoa.
— Cê-a-cê-i-quê-u-e, cacique.
— Pê-a-jota-é, pajé.
Em uma sala de aula com paredes pintadas de verde, ornamentadas com desenhos de pássaros e plantas na Escola Indígena da Ponte, no município de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza, crianças são incentivadas a soletrar palavras. A dinâmica em forma de jogo logo se revela um eficiente método de leitura e escrita entre os pequenos, na faixa etária de seis a dez anos. As palavras são familiares: canoa, cacique, pajé, comunidade… Todos os dias, eles as escutam e até falam algumas delas entre si, mas a grafia e a etimologia, para boa parte dessas crianças, ainda são motivo de dúvidas — e de curiosidade. O método, que, além de estimular o empenho dos estudantes, valoriza os saberes e expressões culturais do povo Tapeba, faz parte do projeto Soletrando a Cultura Indígena.
O trabalho começa quando os professores avaliam o desempenho individual e coletivo dos alunos do 1° e 2° anos do ensino fundamental. O objetivo não é estipular notas, mas observar o aprendizado das crianças. É diante das necessidades e possibilidades detectadas nessa avaliação que se desenrola a atividade prática da iniciativa. A palavra a ser soletrada é definida na hora, por meio de sorteio, e sua natureza temática pode ser muito ampla, variando desde o vocabulário sobre comidas e objetos até referências a práticas e lugares indígenas. De cada turma sai um finalista, que conta com a torcida dos colegas e, caso vença, recebe uma premiação simbólica.
A proposta dialoga com o que defendeu o educador pernambucano Paulo Freire durante o Simpósio Internacional para a Alfabetização, no Irã, em 1975. “Não basta saber ler mecanicamente que ‘Eva viu a uva’. É necessário compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho”, ensinou Freire. Alfabetizar é mais do que unir palavras. Trata-se de entender seu significado e o mundo em que estão inseridas. É importante ter isso em mente em um país no qual a alfabetização no tempo certo ainda é um desafio. Segundo a pesquisa Alfabetiza Brasil, divulgada pelo Ministério da Educação em maio de 2023, 56,4% das crianças brasileiras do 2º ano do ensino fundamental não estavam alfabetizadas em 2021. O percentual de analfabetismo é superior ao de 2019, quando seis em cada quatro crianças dessa fase escolar sabiam ler e escrever.
Por uma educação contextualizada
Professor de língua portuguesa e indígena Tapeba, Flaviano Bento atua há cinco anos na Escola Indígena da Ponte. Ele destaca que, embora o Soletrando a Cultura Indígena ainda esteja em fase inicial, com a edição mais recente realizada em junho deste ano, já é possível perceber ganhos no processo pedagógico. “O principal objetivo é resgatar o vocabulário da cultura indígena que estava se perdendo no tempo, e muitos alunos nem sabiam o significado das palavras. Idealizamos o projeto para que eles conhecessem as palavras e os dialetos. E ainda pudemos trabalhar as regras gramaticais do português, como acentuação”, relata.
Flaviano narra uma cena bem comum desde o início do Soletrando: estudantes chegando à escola e dizendo “minha mãe diz mesmo essa palavra” e na sequência uma e mais outra confirmação, “minha avó também”, “ouvi lá em casa”. Incentivar a atenção ao que é falado no dia a dia permitiu inserir a alfabetização na realidade dos estudantes para além do ambiente escolar.
“Eles se sentiram mais motivados. A partir do momento em que souberam do projeto, que explicamos na sala, eles começaram a estudar. Demos uma relação de palavras para eles pesquisarem os significados”, explica. Indígena Tapeba e atuante na saúde comunitária, José Aldemir Pereira da Silva é pai de seis filhos matriculados na escola, com faixa etária de 2 a 15 anos. Ele expressa confiança nas boas relações com os funcionários das escolas e na sintonia com a comunidade demonstrada pela instituição. “Sabemos que o futuro não depende só da gente, mas sempre vamos buscar melhorar o futuro dos nossos filhos.”
Vocabulário
Tronco-velho, substantivo. Para o povo Tapeba e outras etnias, tronco-velho é sinônimo de ancião, sábio, experiente. Geralmente, troncos-velhos, sejam elas ou eles, são pessoas muito respeitadas nas comunidades em que vivem. Aconselham os mais jovens e, por meio da oralidade, repassam as tradições culturais, a história e a memória do seu povo.
O diferencial da escola Indígena
O estado do Ceará conta com 39 escolas indígenas na rede estadual e com uma subpasta própria, a Secretaria de Educação Indígena, vinculada à Secretaria Estadual de Educação. O processo de constituição dessas instituições data do final dos anos 1990 e é resultado de muita luta de diferentes etnias pelo acesso à educação.
Na Escola Indígena da Ponte, a mobilização comunitária também foi determinante. Antes de a escola iniciar suas atividades, em 2010, crianças e adolescentes indígenas do povo Tapeba estudavam em escolas convencionais, ou seja, não indígenas, do município de Caucaia.
Pedagoga e professora da Escola da Ponte, Ivanilda Pereira, 39 anos, de etnia Tapeba, esteve presente desde as primeiras reivindicações para a criação da instituição e lista as motivações da comunidade.
“Resolvemos que a necessidade falava mais alto, que estávamos precisando de uma escola indígena da própria comunidade, porque víamos nossos alunos, nossos adolescentes, se perderem ‘no mundo’ sem ter conhecimento da sua própria cultura”, relembra ela, que começou a trabalhar na escola ainda como voluntária.
O preconceito enfrentado por crianças indígenas em outras escolas também foi um ponto de atenção. “Quando iam para a escola convencional eram discriminados, não podiam ir descalços, eram acusados de estar sujos, se o cabelo estava assanhado diziam ‘não têm nem pente’. Por causa de tudo isso, a gente pensou nessa escola”, conta Ivanilda.

Também do povo Tapeba, a professora Maria Ceciliana, 44 anos, é mãe de Carlos Miguel, aluno do 9° ano do ensino fundamental 2. Carlos estuda ali desde o início de sua vida escolar. Maria destaca o acolhimento e a presença da cultura indígena como diferenciais para o desempenho escolar do adolescente. “Qual o sentido de ser professora indígena se meu filho não estiver estudando a cultura? Eu acredito, sim, que a educação indígena transforma. E por isso ele está aqui”, demarca Ceciliana.
A Escola Indígena da Ponte oferece turmas desde a educação infantil até o 9º ano do ensino fundamental 2, além de Educação para Jovens e Adultos (EJA). Assim como outras escolas, seu objetivo é educar para a vida, para a cidadania e para os desafios contemporâneos, mas sempre com especial atenção às raízes culturais. “Não que ela vá ensinar somente a cultura indígena; vai ensinar as outras disciplinas, como o português, a matemática, a história, a geografia, mas dentro dessa proposta curricular também englobamos a arte-cultura. Nela trabalhamos a expressão cultural, a espiritualidade, o conhecimento do seu povo e da sua identidade”, explica Ivanilda, que não esconde a satisfação. “Eu me sinto muito orgulhosa do papel que exerço na comunidade e na escola. Estou muito feliz porque nossa escola está sendo reconhecida e nossos alunos estão aprendendo.”
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