

Por Vilhena Soares, Rede Galápagos, Brasília (DF)
Após ter se formado no magistério, Celiana Moroso decidiu retomar os estudos e cursar letras para se aproximar mais de sua paixão: a literatura. Durante as aulas de inglês que ministra no Centro de Ensino Fundamental 16, na cidade-satélite de Ceilândia, em uma das regiões mais carentes do Distrito Federal, a professora deparou com um caso inesperado: uma de suas alunas tentou cometer suicídio. O episódio despertou um desejo de auxiliar os jovens a lidar com os desafios enfrentados fora da sala de aula, e os livros foram a ferramenta escolhida para ajudar em sua missão.
O primeiro grupo de leitura com roda de conversa foi criado pela professora em 2018 e contou com a participação apenas de meninas. A iniciativa deu certo. As jovens dividiram problemas enfrentados em seu cotidiano, como relacionamentos abusivos. O sucesso inicial impulsionou a professora a expandir o projeto para outras turmas do colégio. Nascia o Desiderata, palavra derivada do latim que significa um objeto de desejo, ambição e anseio, que também dá nome a um dos poemas favoritos de Celiana, de autoria do escritor americano Max Ehrmann.
O objetivo do programa é que os jovens leiam as obras literárias apresentadas pela professora, todas com cunho social, e discutam os temas apresentados por intermédio dos livros. Ao expandir a iniciativa para todo o colégio, a docente propôs que a participação fosse livre, para que os alunos não se sentissem pressionados a participar. “Fui surpreendida porque muitos se interessaram; parece que eles se sentem mais motivados quando a tarefa não é obrigatória”, brinca Celiana. A escolha das leituras é feita a dedo, e sempre de obras que discutam questões sociais, dando prioridade a autoras mulheres. A estratégia inicial foi introduzir os jovens primeiro nos contos, histórias mais curtas, que não exigem tanta concentração, e aos poucos aumentar o tempo de leitura. Com a evolução do Desiderata, os 15 minutos iniciais aos poucos transbordaram para meia hora.
Entre os temas mais trabalhados com os alunos estão o preconceito racial e a violência de gênero, dificuldades recorrentes na vida dos jovens. Celiana considera essencial mostrar aos estudantes o que é o empoderamento feminino e utiliza como exemplo mulheres que defendem o feminismo. “Lemos muito Cristiane Sobral, por exemplo. É fundamental mostrar a elas que não devem se enxergar inferiores aos homens. São lições que servem também para os meninos. Mostrando que somos iguais, derrubamos o que sofremos constantemente com essa sociedade patriarcal”, ressalta.

Responsabilidade coletiva
O Desiderata aborda frequentemente o tema do bullying, problema recorrente na adolescência. A professora revelou que a adoção das rodas de conversa provocou uma mudança positiva na forma como os jovens lidam com as atitudes de intimidação e violência sofridas na escola. Brincadeiras machistas e homofóbicas passaram a ser condenadas pelos próprios alunos, que vigiam e cobram mudanças dos autores dos abusos.
Celiana comemora a nova postura dos estudantes, que repetem até frases ditas durante as rodas de conversa ao defender os colegas vítimas de violência. “Nos encontros sempre friso que se você vê o erro e não faz nada para mudar, também está fazendo parte daquilo. Hannah Arendt já dizia que o mal não é maior que o bem; o problema é que o bem se cala”, enfatiza.
De jovem para jovem
Durante os encontros do Desiderata, a idealizadora do projeto inclui participação de outros jovens. A troca de informações com pessoas da mesma faixa de idade é vista como essencial para que as mensagens de auxílio tenham efeito. Uma das convidadas do projeto foi Samara Sanches, de 17 anos, moradora de Taguatinga, no Distrito Federal, e integrante do Grupo de Enfrentamento a Depressão e Suicídio (Geds), que busca promover a saúde mental dos adolescentes com palestras sobre o tema em escolas da capital.
Durante a primeira visita, Samara compartilhou suas experiências pessoais. “Vários de nós somos afetados, mas muitas vezes não sabemos quais os sinais. Quando falamos do mesmo lugar, fica mais fácil de a pessoa se identificar”, ressaltou. A estudante acredita que a maioria dos jovens acaba acumulando uma série de problemas por se verem sozinhos. Quando deixam de compartilhar as suas histórias e dificuldades, as agruras se tornam maiores e podem desencadear transtornos mais sérios. “Eles acham que se admitirem essas frustrações serão criticados, ainda mais com as redes sociais hoje em dia, em que todos se esforçam para parecer bem”, frisou. Para ela é essencial ter espaços como o Desiderata, para que os adolescentes se sintam acolhidos. “A história muda quando os jovens percebem que há uma saída.”
Luta contínua
Em 2022 Celiana recebeu o prêmio Professor Transformador do Instituto Significare. O Desiderata foi reconhecido nacionalmente, o que deixou a educadora orgulhosa de seu trabalho — e também estimulou sua ambição de influenciar uma mudança na forma como os jovens veem o mundo.

Professora de inglês e também especialista em gestão de políticas públicas em gênero e raça pela Universidade de Brasília (UnB), ela realizou uma segunda graduação em terapias integrativas e complementares, para se comunicar melhor com os jovens. Ela acredita que é importante estar sempre alerta, mantendo um olhar clínico quanto às dificuldades enfrentadas pelos alunos. “Acho essencial saber o que eles passam, sentir quais as necessidades que surgem e trabalhar em cima delas, com o contexto.”
A professora destaca que concursos de poesia, música e outras atividades promovidas pelo Desiderata são planejadas com base nesse diagnóstico. “Tem turmas em que vale incentivar um debate mais fervoroso sobre homofobia, por exemplo; em outros casos, já temos a depressão como algo mais recorrente”, explica. Celiana também dá destaque aos problemas comportamentais desencadeados durante a pandemia de covid-19, que ainda deixa sequelas. “Demos continuidade ao projeto durante o isolamento social, quando tivemos encontros virtuais. Foi interessante porque até os pais acompanhavam e elogiavam os temas debatidos”, relata. “Mantemos esse cuidado para lidar melhor com as mudanças que vimos surgir após esse período, como o aumento da ansiedade, por exemplo.”
Como a escola pública não dispõe dos mesmos recursos que o ensino privado, o papel dos professores é ainda mais importante, ressalta a educadora. “Quem não teve um mestre que fez você deixar de se ver como invisível? Que mudou a sua vida? Isso pode mudar a vida dos alunos, independentemente da condição deles.” Para a criadora do Desiderata os jovens precisam de alguém que dê voz a eles, mas que também os ouça e os enxergue. “Hoje temos dificuldade de olhar no olho, vivemos no celular. É essencial dar aos estudantes a possibilidade de dialogar e defender seus pontos de vista. Quando fazemos com que reflitam e filosofem sobre si mesmos, abrimos a possibilidade para algo extremamente lindo e recompensador.”
Saiba mais
- A leitura que traz um novo olhar
- LUCIENE TOGNETTA — “O sofrimento emocional também é problema da escola”
- VIVIANE MARINHO LUIZ e MÁRCIA CRISTINA AMÉRICO — “Literatura feminista negra e educação: quem fala de nós somos nós”