

Por Maggi Krause, Rede Galápagos, São Paulo
“Meu olhar para a educação tem a ver com a minha experiência com o cinema, com os filmes que fiz e o que aprendi com eles.” Dessa forma Clarisse Maria Castro de Alvarenga, cineasta e professora da Faculdade de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), termina de se apresentar no início desta entrevista. Suas palavras carregam força e consequência: são o experimentar e o fazer que impulsionam aprendizagens. Mas, se o uso das tecnologias já constituía uma dificuldade para os educadores — e se tornou o maior desafio durante a pandemia —, parece ainda mais ousada a proposta de produzir cinema na escola.
“Nosso propósito era fazer com que os professores percebessem o cinema como algo que está ao alcance das mãos, que constitui a aula, como algo que se liga à educação propondo outro espaço, outra forma de interação e novos termos para o encontro no espaço da aula”, escreveu Clarisse no livro Aprender com imagens, um relato detalhado sobre o Laboratório de Práticas Audiovisuais (Lapa). O Lapa organizou oficinas de práticas audiovisuais para professores de escolas públicas de Belo Horizonte e educadores do território indígena Xakriabá, no norte de Minas Gerais. Durante o processo, ficou evidente que o audiovisual é um recurso potente para que as comunidades reconheçam seus indivíduos, sua cultura e também narrativas e memórias sobre os antepassados, resgatando histórias ou tradições.
O Lapa transformou olhares de educadores e estudantes, impactou práticas pedagógicas e propõe uma ação contemporânea para implementação do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas escolas. “A experiência de fazer cinema oferece um grande potencial para a educação, pois, para além do próprio saber técnico, acontece um processo de construção de conhecimento pela via da imagem, que possibilita aprendizado coletivo e individual.” A pesquisadora nota que o audiovisual é uma linguagem que permite a comunicação de maneira ampla na sociedade, enquanto o saber ainda caminha muito pela via da escrita na escola, levando pouco em consideração os múltiplos letramentos.
Realizado entre julho de 2019 e março de 2022, com apoio do Itaú Social e da Fundação Carlos Chagas, por meio do edital “Anos finais do ensino fundamental: adolescências, qualidade e equidade na escola pública”, o Lapa foi uma adaptação do projeto Cinema, Educação e Comunidades por Vir, realizado pela UFMG. Uma das riquezas de participar do edital de pesquisa foi o intercâmbio de experiências e a participação nos fóruns de discussão, além do diálogo em reuniões individuais sobre o projeto, que precisou se adaptar ao formato on-line durante a pandemia. “Os profissionais que nos acompanharam têm muito conhecimento sobre pesquisa aplicada e seu resultado para a educação básica. A experiência foi muito bem pensada e cuidada, fomos privilegiados”, descreve a cineasta, que contou com a assistência das pesquisadoras Alexia Melo e Sílvia Miranda na realização do Lapa.
Na entrevista a seguir, Clarisse conta sobre audiovisuais dos professores, a diferença entre os processos pedagógicos dos educadores da cidade e do território indígena e ressalta a importância das imagens para o resgate de histórias e culturas adormecidas, mas que podem ser recuperadas dentro da escola.
NNotícias da Educação — Como um projeto como o Lapa pode auxiliar no ensino de cultura afro-brasileira, africana e indígena dentro das escolas?
CClarisse Alvarenga — No projeto Cinema, Educação e Comunidades por Vir, pensado na esteira da Lei 13.006/2014, que determina duas horas mensais de cinema na escola, eu selecionei filmes interessantes, na grande maioria brasileiros e latino-americanos, que proporcionassem reflexão sobre a cultura indígena e a afro-brasileira. A partir da análise dessas obras para um acervo da educação básica, elaborei o projeto do Lapa, planejando também a criação de novos filmes. Mesmo após as leis que tratam da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena na escola, ele fica restrito no tempo e no espaço. É como se essas culturas tivessem participado na constituição do país, mas agora estão distantes dos estudantes e dos professores. Os filmes estimulam essa discussão e o cinema é potente nessa aproximação. Penso que é mais interessante tratar dessas temáticas não como conteúdo, mas como experiência que faz parte da vida dos alunos. Eles são, em sua maioria, descendentes de negras e negros escravizados e de indígenas, suas histórias foram apagadas para assimilarem outra cultura, e isso cria, em todos nós, uma lacuna de conhecimento. A ideia do Lapa é trazer o cinema para o alcance das mãos, para ser visto e discutido e constituir um meio para as pessoas contarem suas próprias histórias.
“Os indígenas têm formas próprias de conceber e pensar a imagem, o cinema e a fotografia. Para eles, o olhar atravessa a câmera e se modifica…”
NPor que o nome Lapa acabou sendo mais do que uma sigla e como ampliou a teia de significados proposta pelo projeto?
CA região do Parque Nacional do Peru Açu, no norte de Minas, é cheia de formações rochosas e cavernas. Uma dupla de professores do Lapa do território Xakriabá foi rodar um filme ali, nas lapas (a palavra lapa é sinônimo de gruta), para onde o povo se dirigia quando a aldeia era invadida. Era um local de refúgio e de resistências, para onde fugiam para continuar sendo indígenas. As invasões eram tentativas de espoliar a terra e também soterrar a cultura e a história desse povo. A lapa era aonde se ia para resguardar a cultura, tudo a ver com o sentido do projeto.

NComo foram as experiências percebidas durante a formação para produção audiovisual de 13 professores dos anos finais do ensino fundamental, sendo 6 deles de origem Xakriabá?
CEm Belo Horizonte, os professores da rede municipal e da estadual passavam sábados inteiros na UFMG, assistindo a filmes, fazendo exercícios com a câmera, discutindo questões do cinema. A partir disso, eles refletiam sobre sua prática pedagógica e planejavam atividades que poderiam fazer nas escolas, formulavam novos projetos e assumiam o papel de criadores. No território indígena, a formação aconteceu depois e de forma mais intensiva, contando com um mediador, o fotógrafo Edgar Kanayrõ Xakriabá. A gente chegava com uma proposta e, a partir dela, ele trazia questões da prática dele e os professores entravam na conversa. Os indígenas têm formas próprias de conceber e pensar a imagem, o cinema e a fotografia. Para eles, o olhar atravessa a câmera e se modifica… não é só enquadramento, profundidade de campo. A forma como eles compreendem a imagem envolve esse atravessamento, como se todos os sentidos fossem aguçados pela experiência do ato de olhar; isso tem a ver com a cultura deles.
NQuais foram as principais diferenças nos conteúdos abordados e no fazer pedagógico de professores das escolas urbanas e de indígenas que participaram do Lapa?
CAs questões dos indígenas são as que afetam o território deles. Os professores se colocam no lugar de mediadores entre a cultura tradicional e a experiência contemporânea dos mais novos. Quando vão pensar em alguma prática pedagógica, pensam primeiro nos mais velhos, em como aprender, registrar e criar memória a partir do conhecimento ancestral — isso é fundamental na escola deles. Os Xakriabá percebem que o índice de suicídios é maior entre crianças e adolescentes indígenas, então se perguntam o que podem fazer para interferir. Imaginaram que o conhecimento sobre os rituais tradicionais do luto foi se perdendo ao longo do tempo e resolveram fazer um filme que deflagrasse a conversa com os jovens sobre o suicídio. Em outro filme, registraram as narrativas dos mais velhos na lapa, pois os educadores acham imprescindível que os mais novos saibam essas histórias. Já em Belo Horizonte, os professores pensam primeiro nos interesses dos adolescentes e das crianças e a partir deles planejam suas práticas pedagógicas; são diferenças no modo de pensar a escola e sobre o que é importante aprender.

NPode dar um exemplo de produção que considerou reveladora da cultura no território indígena?
CVale detalhar o filme Barro preto e luto no território Xakriabá, em que as professoras Edna e Roseli reconheceram como problema que os adolescentes não sabem mais sobre os rituais realizados pelos anciãos. Elas entraram em contato com pajés, pesquisaram rituais e optaram por um em que uma roupa branca é enterrada em um lugar do território onde tem barro preto. Depois de três dias, ela deve ser usada pelos parentes próximos da pessoa falecida. No filme, as professoras refazem esse ritual e, depois de três dias, desenterram a roupa e a encontram não totalmente tingida de preto e ficam se perguntando o que deu errado. Isso provoca reflexão em torno das mudanças climáticas que impactam o local, identificando que hoje a terra é mais árida, pois sofre com repetidas secas. Esse filme termina com uma cena muito significativa, com o pajé Deda, que acompanha o ritual, molhando as mãos no barro preto e fazendo um desenho, como se estivesse se pintando. Para mim, é como se dissesse: “Hoje não é mais possível tingir toda a roupa, mas isso não significa que a gente deva afastar o nosso corpo do contato direto com este barro”. Esse exemplo tem importância para a escola, porque além de informar os rituais do luto, discute as mudanças climáticas e incentiva os jovens a retomar o contato com a sua terra.
“O que foi invisibilizado costuma ser um problema para a escola e pode se tornar visível por meio do audiovisual.”
NE qual foi marcante em Belo Horizonte?
CDestaco a produção da professora Ana Paula Soares da Silva Gomes, que fez um filme chamado Um desenho, várias emoções. A ideia foi recontar a história da escola a partir de um quadro da biblioteca com um desenho feito pelas crianças por ocasião da inauguração do prédio. Ela convidou três mulheres para narrar: uma delas é professora de arte, a outra é alfabetizadora e a terceira é a Selma, funcionária de serviços gerais da escola. A produção é um relato sobre como a vida dessas mulheres se entrelaça à vida escolar. Selma conta que fazia poemas e que criou o hino da escola. Por isso, quando o filme foi exibido para as turmas de 6º ano, um dos adolescentes disse: “Não sabia que a Selma era artista, achei que ela fosse apenas uma faxineira”. Esse tipo de registro é importante para a reconfiguração das relações étnico-raciais dentro da escola. O depoimento fez com que Selma adquirisse outra posição; ela passou a ser vista de outra maneira pela comunidade escolar. Além disso, a Ana Paula exibiu cinco filmes feitos por cineastas da região periférica onde a escola está inserida, e esses filmes dialogam com o dela. O projeto realizado por essa professora negra a empoderou, pois ela se reconheceu como criadora, como cineasta, e se sentiu confortável para propor essa experiência aos estudantes.


NA produção audiovisual pode ser uma boa ferramenta para proporcionar o resgate de histórias e culturas pelos jovens?
CPode, sim! A produção audiovisual permite retomar culturas e histórias que tentaram apagar, mas esse gesto de apagamento sempre vai deixar vestígio. Ao entrar em contato com narrativas e imagens, é possível estabelecer relações e vínculos e ir acordando essa história que está adormecida, mas não esquecida totalmente. O que foi invisibilizado costuma ser um problema para a escola e pode se tornar visível por meio do audiovisual. Um exemplo são alunos que sofrem bullying por causa do cabelo black power (uma dupla de estudantes com esse visual participou de um dos filmes). O trabalho com a imagem tem a vantagem de favorecer a própria imagem da pessoa como autor, criador, alguém que narra, alguém que escuta, que tem opiniões e ideias. O cinema tem essa caraterística de produzir aproximações e identificações.
Cinco recomendações da pesquisa para que as escolas promovam a prática pedagógica audiovisual
- Criar espaço de escuta de docentes;
- Disponibilizar espaços, como laboratório de informática com equipamentos eletrônicos, câmeras, computadores e projetores;
- Constituir um acervo próprio de filmes, para que estudantes tenham referência sobre as obras nacionais e internacionais produzidas;
- Realizar mostra de filmes por estudantes e professores;
- Realizar mostra de filmes feitos nas escolas para a comunidade.
Sugestões para os gestores das secretarias de Educação, como forma de incentivar projetos pedagógicos na área:
- Oferecer formação audiovisual a professores e professoras da educação básica;
- Promover o intercâmbio entre professores;
- Constituir acervo de filmes de acesso público para escolas e professores;
- Disponibilizar propostas pedagógicas criativas de produções audiovisuais.
NQual considera ser a mais importante recomendação da pesquisa? E por quê?
CAcredito que seja o investimento nos professores, qualificando-os para fazer uso da imagem e do som, pois a atuação deles é fundamental para a aprendizagem. Também acho que são capazes de fazer a transição do ensino sem as tecnologias para o ensino com elas. Podem criar atividades e mediações para que a experiência com imagens e sons seja positiva na afirmação de histórias, de culturas, de identidades e da escola como espaço comum de discussão sobre a sociedade. Também são importantes o sinal de internet, os equipamentos e a infraestrutura das escolas, mas sem investir no professor nada acontece.
“Como preparar crianças e jovens, já penalizados pelo excesso de telas, para questionarem o que veem, para identificarem uma manipulação? Essa discussão tem que ser feita pelo campo da educação de forma mais efetiva.”
NPode nos contar no que consiste o filme-aula, parte da proposta do Lapa nas escolas?
CNão tem nada a ver com a videoaula, que na pandemia foi basicamente reproduzir o conteúdo da aula expositiva diante do computador, e isso não motiva crianças e adolescentes. O conceito de filme-aula é pensar a aula como lugar de criação. Um exemplo é uma professora fazer uma narrativa em torno de fotografias registradas por ela. Ao falar, é como se gerasse um filme, produz uma experiência sensível na inter-relação com as pessoas e saberes que vêm da imagem. Também vale propor um trabalho ativo dos estudantes para registrar narrativas com instrumentos e recursos. No período presencial, exibimos trechos de filmes para discutir de forma coletiva. Durante o trabalho remoto, investimos em dinâmicas, como fazer uma pergunta e pedir que todos respondessem ao mesmo tempo. No meio da cacofonia, extraíamos uma palavra e pedíamos que os adolescentes clicassem numa imagem com base nessa palavra. É preciso que os professores aprendam a usar ferramentas para ampliar seus recursos pedagógicos, permitindo que os estudantes se emancipem na relação com a tecnologia, com a mídia e com a linguagem audiovisual. A escola ainda tem muito a caminhar nesse sentido.
NRecentemente foi sancionada a Política Nacional de Educação Digital (Pned,) Lei 14.533, de 2023, e com vetos. Qual a sua expectativa em relação a ela?
CEssa política, se bem implementada, é uma possibilidade de trabalhar dentro das escolas tudo o que eu comentei anteriormente. Hoje, 80% do que circula nas redes sociais são vídeos, então como não investir em uma educação audiovisual se as pessoas trocam vídeos e imagens o tempo todo? Como preparar crianças e jovens, já penalizados pelo excesso de telas, para questionarem o que veem, para identificarem uma manipulação? Essa discussão tem que ser feita pelo campo da educação de forma mais efetiva, para que educadores e alunos saibam sobre a construção do audiovisual, que tudo precisa ser checado e controlado, que não se trata de uma verdade, e sim de uma linguagem. Lancei recentemente, junto com Adriana Fresquet, o livro A Política Nacional de Educação Digital (Lei 14533): perspectivas para o cinema e para a educação, em que falamos da importância de pensar as práticas pedagógicas nesse cotidiano de exposição intensa às imagens e às redes. Minha expectativa com a lei é que ela ajude a pensar políticas de inclusão do cinema e da cultura audiovisual de forma crítica nas escolas.
Saiba mais
- Livro Aprender com imagens, de Clarisse Alvarenga, que conta a experiência do Lapa em Belo Horizonte e no território Xakriabá
- Link para o filme Barro preto e luto no Território Xakriabá, no Youtube
- Link para o filme Um desenho, várias emoções, no Youtube
- Canal do YouTube do Lapa (Laboratório de Práticas Audiovisuais)
- Estudantes produzem filmes sobre história e cultura negra e indígena