

Por Wallace Cardozo, Rede Galápagos, Salvador (BA)
Fátima é conhecida como uma sonhadora. Mulher negra, cresceu ouvindo que precisaria ser duas vezes melhor em tudo o que se propusesse a fazer. Ousou imaginar um mundo em que as crianças negras não precisem crescer com esse tipo de preocupação. Há dez anos, ela iniciava o seu trabalho no Centro Municipal de Educação Infantil Dr. Djalma Ramos, em Lauro de Freitas, Bahia. “Quando chegamos aqui, logo notamos que a comunidade é majoritariamente formada por mulheres e que a experiência da negritude é muito forte na escola. Naquele momento, entendemos a importância de ressignificar o currículo da instituição”, lembra.
A pedagoga quase sempre utiliza a primeira pessoa do plural ao falar. O coletivo se refere ao grupo de educadoras oriundas do mesmo concurso que chegaram à instituição em 2013. Uma década depois, o centro educacional conta com um projeto político-pedagógico pautado no antirracismo e no protagonismo negro. No pátio, há um enorme mural em que fotos de personalidades negras formam o rosto da cantora Elza Soares. As salas de aula têm nomes como Reino Wakanda e Quilombo Quingoma, este último em referência à comunidade quilombola que fica a poucos quilômetros da escola e é apontada pelos moradores como o primeiro quilombo do Brasil, como registra o memorial do documentário Via Metropolitana – a estrada que dividiu vidas, de Jorge Bonfim Santiago Farias.
Nesse contexto, foi escrito e executado pelo conjunto de professoras o projeto da pesquisa “Por uma infância escrevivente: práticas de uma educação antirracista”, da qual Fátima Santana, coordenadora pedagógica da escola, foi proponente. Uma das selecionadas pelo Edital Equidade Racial na Educação Básica, uma iniciativa do Itaú Social realizada pelo Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) em parceria com o Instituto Unibanco, Fundação Tide Setubal e o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), a pesquisa resultou em duas publicações. A primeira delas foi o Caderno Metodológico. “Sempre que fazemos uma apresentação ou palestra, alguém pergunta como trabalhamos uma educação antirracista com bebês e crianças pequenas. Assim, surgiu a ideia de fazermos esse caderno metodológico, para que qualquer educador possa acessar esse conhecimento.” A segunda publicação foi o livro O sonho de Ayo.
“Todas as ideias vieram das crianças”
Outubro de 2021. As instituições de ensino do Brasil retomavam as atividades presenciais, se adaptando aos protocolos de segurança, ainda necessários por causa da pandemia de covid. Fátima, para variar, tinha um sonho, que logo passou a ser de todas as professoras.

Elas queriam que as crianças escrevessem uma história para um livro, inspirado na prática das escrevivências. O termo, criado pela escritora Conceição Evaristo, está relacionado a uma escrita protagonizada por autoras negras e autores negros, que leva em consideração as experiências pessoais.
As professoras organizaram tudo e entraram em contato com as pessoas responsáveis pelos estudantes. Entre alunos de G3, G4 e G5, 13 crianças participaram dos encontros, mediados pelas professoras Mabian Ribeiro e Noemia Almeida. O primeiro dos cinco encontros serviu para fazer com que as crianças se sentissem à vontade. As educadoras se perguntavam como estimulariam a criatividade a ponto de surgir dali uma história. “Não sabíamos como estava sendo a experiência das crianças em casa, já havia algum tempo sem a rotina do dia a dia na escola”, lembra Mabian.
A apreensão, no entanto, não durou muito tempo. Noemia conta que “elas vieram com sede de estar no espaço da escola. Para a maioria, tudo era muito novo, então foi melhor do que imaginamos. Dois anos fora da escola é muito tempo para uma criança pequena”. A estratégia para o primeiro dia foi contar histórias de personalidades negras, como a escritora Carolina de Jesus, a cantora Elza Soares e a própria Conceição Evaristo, por meio do uso de fantoches, bonecos e ilustrações. Depois, as crianças brincaram e desenharam livremente.
Em determinado momento, as mediadoras lançaram a seguinte provocação para a turma: “Como começamos a construir uma história?”. O ponto de partida não demorou a surgir. Criar um conto sobre uma festa de aniversário foi uma decisão unânime. Daí em diante, a história foi surgindo naturalmente, com elementos trazidos pelas próprias crianças. Apenas mentes muito férteis e criativas seriam capazes de envolver numa mesma história um dia na escola, uma festa de aniversário, um passeio no shopping, Elza, Carolina e bastante comida. “Ficamos surpresas com essa parte porque esperávamos que sugerissem muitos doces, mas falaram também sobre comidas regionais.” No livro, o banquete tem itens como comida baiana, mocotó, caranguejada, churrasco… E, claro, sorvete, brigadeiro, algodão-doce e bolo de morango.
A história ficou pronta após três encontros. As duas sessões criativas seguintes foram dedicadas às ilustrações. “O ponto principal de toda a construção do livro foi o protagonismo das crianças. Deixamos que elas criassem livremente”, afirma a professora Mabian. O sonho de Ayo está disponível para download gratuito no acervo digital Anansi – Observatório da Equidade Racial na Educação Básica. A tiragem física é mais um sonho das professoras e das crianças. Por enquanto, existe um único exemplar, que faz parte da biblioteca da escola.
Sonho que se sonha junto
Uma das falas mais famosas de Nelson Mandela é: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. É com essa citação que a pedagoga Fátima Santana costuma responder a respeito da importância de pautar as questões raciais desde cedo. Ela acredita que a proposta de trabalhar uma educação antirracista desde o berçário seja algo pioneiro na educação do país.
No Centro Municipal de Educação Infantil Dr. Djalma Ramos, 80% das crianças e 100% das professoras são negras, de acordo com dados da própria instituição. A coordenadora pedagógica chama a atenção para o fato de que os tensionamentos raciais também ocorrem em espaços de público majoritariamente negro. “Em geral, as crianças recebem muito bem as nossas propostas.

O adulto é que vem com os seus preconceitos.” As professoras vestem branco às sextas-feiras, costume comum nas culturas afro-brasileiras e relacionado às religiões de matriz africana. “Quando a gente naturaliza no cotidiano, os preconceitos são reduzidos.”
Práticas simples, porém carregadas de simbolismo, fazem parte da construção de uma educação antirracista, dentro e fora da sala de aula. Soltar o cabelo em público, por exemplo, pode ser uma experiência banal para crianças brancas. Mas, para quem tem o cabelo crespo, isso ainda pode gerar desconforto, muitas vezes por uma repreensão vinda da própria família. “Seria bom se todas as escolas tivessem uma abordagem como essa. Quando comecei a trabalhar com educação, eu não podia dizer que sou candomblecista, ou vir trabalhar de torço, ou mesmo usar a minha conta no pescoço. Quando cheguei aqui, me senti à vontade, quis usar o meu cabelo crespo e afirmar a minha identidade”, relata Vera Bomfim, diretora do centro educacional.
Os depoimentos das docentes são parecidos. Além do sonho, elas têm em comum o fato de terem crescido como meninas negras num país com um passado escravocrata recente. “As crianças aqui têm oportunidades que eu e minhas irmãs não tivemos. Enche nossos olhos de lágrimas ouvir as meninas dizerem que os seus cabelos são lindos. Hoje, trabalho em um espaço em que posso dizer que sou uma mulher de Iansã com Oxum. As crianças podem dizer que, se Conceição Evaristo é escritora, elas também querem ser.” Mabian define como um “encontro de almas” a experiência da construção de uma escola antirracista. “Conseguimos promover uma educação na perspectiva afro-brasileira porque primeiramente pensamos que essa educação era possível.” A professora Noemia diz que “o fazer coletivo, criativo e pensante é o que motiva e traz beleza para a nossa prática”.
Já Fátima, a sonhadora, usou a primeira pessoa do singular pela primeira vez para dizer que “a minha primeira realização está em resgatar a menina negra que cresci sendo, quando não foi possível viver essa experiência de felicidade”. Mas o plural logo ressurgiu em sua fala. “O que construímos aqui é o nosso legado para o mundo. Tem dias em que dá vontade de desistir, mas o coletivo, a presença de outras mulheres pretas, me dá força para continuar. Talvez nem tenhamos a total clareza do que isso significa.” Durante a criação da história, uma das crianças foi questionada sobre como seria possível que tantos elementos inusitados fizessem sentido na narrativa. A resposta estava na ponta da língua: “No sonho pode, pró”.
Sonhos nem sempre são românticos,
Conceição Evaristo
mas protejam seus sonhos como a matéria-prima de suas vidas.
Sonhem olhando para o futuro,
mas façam do hoje o tempo do sonho acontecer.
Pensem que o futuro é agora, neste instante, já.
As conquistas para o amanhã são edificadas desde agora.
É preciso também lembrar que o passado não acabou.
E nem é um tempo vazio, pois foi preenchido pela via dos que vieram antes de nós.
Os antigos perguntam: “Mas de que me vale a sabedoria?
De que me vale a experiência se tudo voar ao vento, se tudo esvaziar no nada?
De que me valem os meus pés que abriram tantas veredas,
se nas estradas não pisarem novos pés
e novos sonhos não inaugurarem novas caminhadas?”.
Sonhos nem sempre são românticos,
mas protejam seus sonhos como a matéria-prima de suas vidas.
Façam dos sonhos raízes plenas de tentáculos e campos de plantios,
em que um sonho anelando ao outro, ao outro e ao outro,
coletivamente, afirme que os dias de bonanças são possíveis,
apesar de tudo.
Saiba mais
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