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Paulo Freire — a defesa da autonomia, do espírito crítico e do diálogo

Patrono da educação brasileira, o educador entendia o conhecimento como um direito e a educação como parte da política cidadã, dos direitos humanos e da construção diária da história


Por Paula Salas, Rede Galápagos, São Paulo

Em 1921, o presidente do Brasil era o paraibano Epitácio Pessoa. Foi uma exceção à então vigente política do café com leite, quando São Paulo e Minas Gerais revezavam no poder executivo do país. Seu governo foi repleto de acontecimentos no campo político, econômico, social e cultural. No meio desse momento histórico, em setembro de 1921, no Recife (PE), nasceu Paulo Reglus Neves Freire, mais conhecido como Paulo Freire.

Patrono da educação brasileira desde 2012, Freire entrou para a história nacional e internacional como um educador que defendia uma perspectiva libertária, crítica, conscientizadora e política da educação. Apesar de ter falecido em 1997, em São Paulo, vítima de um infarto, seus estudos continuam atuais e inspirando aqueles que atuam e pensam no processo de ensino e aprendizagem. “As ideias de Paulo Freire se fortalecem até hoje através da democracia, cidadania e justiça social”, diz Patrícia Chaves, diretora da Escola Educador Paulo Freire, no Recife (PE).

Para Paulo Freire, o conhecimento é um direito e a educação anda ao lado da política. “Não de uma política partidária, mas da cidadania, dos direitos humanos, da construção diária da história”, explica Afonso Celso Scocuglia, pós-doutor em educação pela Universidade de Lyon e pela Unicamp e professor titular da Universidade Federal da Paraíba. Isso significa que o processo de aprendizagem também está sempre interligado ao contexto social, cultural e econômico. 

O professor sempre deve ser um pesquisador, tanto dos conteúdos que trabalha em sala de aula quanto das relações que estabelece com seus alunos para poder acompanhar essas transformações constantes. “Ele fala muito de dodiscência, a docência que não se separa da discência. O trabalho do professor não pode ser separado do trabalho do aluno. Ele precisa, desde o planejamento, ser um trabalho conjunto”, diz o professor da UFPB. 

Afonso defende que não é possível separar a vida de Freire de sua obra, pois uma estava muito atrelada a outra. “É um teórico da prática”, afirma. “Sua teoria não é de gabinete, vem da prática. Ele faz reflexões atrelado a suas experiências. Isso faz com que, com o tempo, sua teoria vá se adaptando e ganhando novas cores”, complementa.

Um breve panorama de sua vida
No livro Paulo Freire: uma história de vida, de Ana Maria (Nita) Freire, viúva do educador, ela explica que, apesar de Freire ter cursado direito, sempre estiveram em seus planos continuar a experiência de professor que viveu no Colégio Oswaldo Cruz, que era dos pais de Nita. 

Na época, não havia em Pernambuco um curso para ser professor de secundária, que seria equivalente aos anos finais do ensino fundamental e ensino médio. O curso de direito era muito focado em uma formação humanística — e que foi base importante para sua perspectiva. “Ele é marcado pelo humanismo, uma profunda crença no ser humano, esperança de que o ser humano é autor de sua história individual e também história coletiva”, afirma Afonso.

Enquanto ainda cursava a graduação, ele continuou lecionando língua portuguesa no Oswaldo Cruz e dando outras aulas particulares. Em 1947, formou-se e recebeu o convite para trabalhar com alfabetização de adultos no Sesi-PE, experiência muito importante em seus estudos, como ele mesmo reconheceu posteriormente.

Desde aquele momento até 1997, dedicou sua vida integralmente à educação. Enquanto estava no Sesi, iniciou seu trabalho no ensino superior, sem nunca deixar de lado a educação básica. Também nesse período, começou a ter reconhecimento fora do Recife e passou a ganhar no Brasil. 

Em 1963, teve a famosa experiência das 40 horas de Angicos (RN), quando liderou um programa que alfabetizou 300 adultos em um mês. Após essa experiência, recebeu o convite de João Goulart, que era presidente na época, para coordenar o Plano Nacional de Alfabetização.

No entanto, antes de as discussões avançarem, veio o golpe militar. Seu pensamento questionador não condizia com a ditadura militar, por isso rapidamente se tornou um perseguido pelo regime. Ainda em 1964 foi detido duas vezes e passou, ao todo, por volta de 70 dias preso. Em outubro daquele mesmo ano partiu para o exílio. Apenas 16 anos depois ele pôde retornar ao Brasil, em agosto de 1979, quando recebeu anistia. 

Durante aqueles anos fora do país, morou em países como Bolívia, Chile, Estados Unidos e Suíça — sem contar os muitos outros que visitou, entre eles diversos países africanos, onde desenvolveu importantes trabalhos na área de alfabetização. 

Ao retornar, em 1979, deu continuidade aos seus estudos e experiências por todo o Brasil — além de manter diálogos internacionais que já cultivava naquele momento. 

Em sua vida pessoal, casou-se com a professora Elza Maia da Costa Oliveira em 1944, com quem teve cinco filhos. Em 1988, após o falecimento de sua primeira esposa, em 1986, Paulo Freire casou-se com Nita, com quem viveu até sua morte, em 1997. Desde então Ana Maria cuida do acervo e legado do educador e, até hoje, publica cartas e manuscritos. 

Ideias importantes para entender Paulo Freire
Um dos seus conceitos mais conhecidos é a ideia de que a escola deveria superar a educação bancária, isto é, a ideia de que os estudantes são um repositório vazio ao qual o professor vai transmitindo conhecimento. Pelo contrário, ele era adepto da pedagogia da pergunta. “As problematizações devem dirigir o estudo, sendo que nesse estudo a relação entre educadores e educandos é muito importante”, explica o professor Afonso.

Nesse sentido, chegamos a outro ponto importante de sua teoria: a educação como um processo dialógico. Isto é, o processo de ensino e aprendizagem é como uma via de mão dupla. Enquanto o estudante aprende na troca com o professor, este também aprende com seu educando. Uma frase de Freire que ficou muito conhecida que pode resumir essa ideia é: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”, como afirma no livro Pedagogia do oprimido

Ele era adepto da concepção de que ninguém ignora ou sabe tudo, por isso sempre é possível aprender um com o outro. Esse processo conduziria, por fim, à autonomia, quando o oprimido se libertaria para se tornar um sujeito crítico. “A educação nunca é neutra, sempre deve trazer uma consciência crítica. Para ele, a questão dos conteúdos deve estar sempre relacionada com a problematização deles, e não ser uma transmissão”, explica Afonso. 

As experiências relatadas na obra do educador não devem ser vistas como um passo a passo a ser replicado de forma mecânica. O diálogo, criticidade e contexto em que a prática está inserida são aspectos imprescindíveis para sua prática. “Ele vai reconstruindo seu pensamento [ao longo do tempo]; dizia que as pessoas que fossem vê-lo não deveriam copiar o que ele dizia, mas reinventar”, afirma o professor da UFPB. 

Princípios do educador em uma escola do Recife
Um ano após o falecimento do educador, foi inaugurada, em sua cidade natal, a Escola Educador Paulo Freire. “A escolha do nome não poderia ter sido melhor, pois é um educador que revolucionou a educação com sua visão”, afirma Patrícia Chaves, diretora da instituição. 

A escola trabalha com a perspectiva do estímulo e valorização da autonomia, solidariedade, diversidade cultural e artística, sensibilidade e criatividade. Além de se orientar pelo “exercício da criticidade e respeito à ordem democrática”, como explica Patrícia. Quem se aprofundar na obra de Freire poderá identificar muitos desses princípios. Na prática, ela explica que se traduz em momentos de escuta, valorização dos conhecimentos prévios dos estudantes. 

Paulo Freire na prática: uma experiência de educação popular
Em 1985, o Núcleo Paulo Freire de Alfabetização de Adultos, formado por mestrandos da Universidade de Brasília (UnB) e estudantes da Escola Normal, identificaram na comunidade da Ceilândia um alto índice de analfabetismo. Foi assim que iniciaram uma experiência de abrir turmas de alfabetização de adultos e se inspiraram na perspectiva do educador recifense para orientar a prática docente. Em 1989, o núcleo se transformou no Centro de Educação Paulo Freire de Ceilândia (Cepafre), que existe até hoje.

De lá para cá, mais de três décadas se passaram e mais de 16 mil adultos foram alfabetizados. Hoje estão com 5 turmas abertas, cada uma com até 25 estudantes. De segunda a quinta-feira, durante duas horas e meia no período da noite, acontecem as atividades em escolas públicas, as quais foram disponibilizadas por uma parceria com a rede de ensino. Às sextas, os educadores voluntários utilizam esse período para avaliação da semana e planejamento da seguinte. 

As atividades são baseadas nas palavras geradoras, um conceito que ficou mais conhecido após a experiência de Angicos. “São palavras-chave para abrir o mundo, o conhecimento”, resume Maria Madalena Tôrres, professora aposentada da rede pública do Distrito Federal e sócia fundadora do Cepafre. 

A escolha desses termos se baseia em um levantamento da realidade do próprio grupo, de termos que fazem parte do cotidiano daquelas pessoas. Para chegar às 21 palavras que são utilizadas nas aulas, a seleção segue algumas orientações: os termos devem ser figurativos, ter “força”, ou seja, estar relacionados a questões sociais da comunidade, e também há o critério de ter uma diversidade de dificuldade fonêmica. 

Assim, surgem palavras como LOTE, BARRACO, CHUVA, LIXO e ASSOCIAÇÃO. Para trabalhar cada uma delas, a turma começa fazendo uma discussão em grupo para depois olhar para aspectos da escrita em si. A ordem em que cada uma é apresentada também segue uma lógica que acompanha o nível de desafio de cada uma e que os estudantes já sabem. 

Já na matemática, a influência de Freire também é perceptível. “Usamos problemas da vida deles. Não são ‘números limpos’; eles vêm carregados [de significado]. É uma matemática problematizadora”, conta Maria Madalena. A educadora explica que muitos deles sabem fazer as contas de cabeça, porém têm dificuldade na hora de sistematizar. Dessa forma, eles trabalham as situações-problema de forma concreta e vão, progressivamente, avançando até chegar ao abstrato e eles estarem prontos para sistematizar. “Não é algo jogado, é refletido.” 

O centro se mantém por projetos financiados, cada um deles com duração de oito a nove meses, incluindo um primeiro momento de busca ativa dos possíveis estudantes. Depois que estão alfabetizados, são incentivados a continuar estudando. Porém, não é em toda região que a rede pública oferece turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), por isso para alguns é mais difícil dar continuidade. De qualquer forma, o Cepafre permanece na luta por melhorias e ampliação dessa modalidade de ensino. 

Além da atuação direta com alfabetização de adultos, o centro também oferece acompanhamento pedagógico e formação de educadores de outros municípios interessados. 

Para se aprofundar

A produção de Freire foi muito extensa. Além disso, por ser uma figura notória no cenário nacional e internacional, muitos livros, artigos e produções audiovisuais se dedicam a sua obra. Para dar os primeiros passos, confira dez indicações:

  • Paulo Freire: uma história de vida, de Ana Maria Araújo Freire.
  • O educador: um perfil de Paulo Freire, de Sérgio Haddad.
  • Paulo Freire vivo. 30 videoaulas produzidas pela UFPB. Disponível no YouTube.
  • A história das ideias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas, de Afonso Celso Scocuglia. Disponível aqui.
  • Instituto Paulo Freire. A organização dá continuidade ao legado do educador. No site é possível encontrar publicações e navegar pelo acervo, com publicações tanto do próprio educador quanto de outros pensadores que dialogam ou tratam dos estudos de Freire. 
  • Educação como prática da liberdade, de Paulo Freire. A obra traz um panorama geral do pensamento do educador.
  • Pedagogia do oprimido e Pedagogia da esperança, ambos de Paulo Freire. O primeiro é sua obra mais conhecida e foi escrito durante o exílio. Na segunda, ele revisita a primeira décadas mais tarde para contar como foi a construção do seu pensamento. 
  • Pedagogia da autonomia, de Paulo Freire. Aqui o pensador compartilha a reflexão a respeito da prática docente. 
  • Cartas à Guiné-Bissau, de Paulo Freire. “É uma espécie de diálogo com os educadores da África. É muito importante, pois foi a oportunidade de acrescentar conceitos que não tinha abordado anteriormente”, explica Afonso. 

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