Ir para o conteúdo Ir para o menu Ir para a Busca

AGÊNCIA DE

Notícias

Boas lições

Meu querido diário

Em Una (BA) alunos aprimoram escrita e leitura registrando seus relatos pessoais, que depois são apresentados em tertúlias literárias


Tertúlia literária realizada com estudantes do 6º ano do ensino fundamental do Colégio Municipal Cândido Romero Pessoa, zona rural do município de Una (BA): exercícios de escrita e leitura com resultados visíveis na qualidade dos textos e na desenvoltura dos alunos. Foto: Maristela Rosa de Souza Gonçalves

Por Afonso Capelas Jr., Rede Galápagos, Porto Seguro (BA)

No início do ano letivo de 2022, a professora de língua portuguesa Cláudia Dapper teve a iniciativa de usar a criatividade em sala de aula para identificar as dificuldades de escrita, leitura e oralidade entre os seus alunos do 6º ano do ensino fundamental do Colégio Municipal Cândido Romero Pessoa, na zona rural do município de Una, sul da Bahia. Entre as ações escolhidas para o aprendizado da turma estava a elaboração de um diário em que cada um pudesse ser estimulado a colocar seus relatos pessoais. Esses textos, depois, eram lidos por eles e corrigidos pela professora.

A ideia deu certo. Cláudia reconheceu muitos estudantes que não conseguiam ler e escrever com desenvoltura. Alguns estavam ainda na fase pré-silábica, outros apresentavam déficit de inteligência (DI) e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), além de timidez extrema causada pela grande dificuldade em aprender. Estes passaram a receber também atenção especial de um psicopedagogo da escola.

De modo geral, todos os estudantes adoraram as atividades a ponto de melhorarem visivelmente suas práticas de escrita e leitura. “Tanto que passaram a narrar nos diários seu cotidiano com mais desenvoltura, desde declarações carinhosas a mim até confissões emocionantes de tristeza, solidão e problemas domésticos”, conta Cláudia Dapper. Posteriormente, os mesmos diários foram utilizados para pesquisas de vários gêneros de textos trabalhados em sala de aula, como receitas, bulas, cartas e bilhetes, entre outros.

Com o entusiasmo de alunos e professora, em pouco tempo a atividade desdobrou-se também para a leitura interativa de livros em tertúlias. O primeiro título adotado foi O diário de Anne Frank, que trata dos sentimentos, medos e alegrias de uma menina judia narrados em seu diário.

Texto da aluna Franciele de Oliveira Magalhães, citado pela professora como um dos exemplos de evolução na prática de escrita. Foto: Claudia Drapper

Junto com sua família, Anne relata como tentou sobreviver ao Holocausto. A turma participou, inclusive, de sessões de cinema nas quais foi apresentado um filme com esse mesmo título. “A fita ainda está presente na lembrança deles, pois comentam em aula e perguntam se neste ano teremos mais filmes para assistir”, comemora a professora. “É um sinal de que o tema foi interessante para eles. E trata-se de um conteúdo que permitiu fazer um trabalho interdisciplinar abordando também história e geografia.” Ao longo do ano vieram leituras de outras obras literárias, como O menino no espelho, de Fernando Sabino, e Vida de droga, de Walcyr Carrasco.

A história em quadrinhos criada em sala de aula pelo aluno Luis Otávio Santos Silva venceu um concurso e foi publicada no jornal da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), parceira da escola. Foto: reprodução

Os exercícios com os diários, as leituras dos livros e as tertúlias, além de tornar as aulas mais dinâmicas e divertidas, fizeram com que os alunos evoluíssem rapidamente. “Esse progresso foi perceptível na produção de textos, que passaram a ser mais extensos, com um vocabulário um pouco mais diversificado e a utilização adequada dos sinais de pontuação”, relata Cláudia.

A pequena Franciele de Oliveira Magalhães, hoje no 7º ano, é um dos destaques nas aulas. Seus textos progrediram a olhos vistos. “Em uma aula em que todos deveriam fazer um resumo escrito de um texto lido por mim fiquei estonteada com a produção dela. No 6º ano Franciele era a que mais escrevia no diário”, recorda Cláudia.

Outro aluno destacou-se em uma atividade em que todas as turmas do fundamental da escola, do 6º ao 9º ano, foram convidadas a redigir notícias que viram nos meios de comunicação para serem enviadas ao jornal da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), parceira da escola, para que os responsáveis publicassem o trabalho vencedor. A turma da professora Cláudia deveria escrever sobre meio ambiente e sustentabilidade, além de relatos sobre o lugar onde moram. O vencedor foi seu aluno Luis Otávio Santos Silva. “Ele escreveu e desenhou uma história em quadrinhos sobre um tema proposto num projeto de semana da ciência realizado em parceria com a Uesc.” 

Para a professora Cláudia Dapper esses resultados são estimulantes. “O desenvolvimento da escrita só é possível se houver prática. A oralidade também melhorou significativamente com o passar dos meses. Mesmo entre os mais tímidos eu consegui que lessem apenas para mim.” Os erros de grafia são corrigidos por ela nos próprios diários. Depois cada aluno faz a reescrita de seus textos já com a estrutura correta de título, parágrafo, introdução, desenvolvimento e conclusão, constituindo a base de uma boa redação já no 6º ano. 

Chegar a tal ponto de evolução em Una não foi tarefa das mais fáceis. “Muitos têm dificuldade para pesquisar na internet porque a escola fica em uma zona rural. Por meio do diário eles conseguiam escrever algumas notícias que ouviam no rádio e viam na TV. Entretanto, alguns deles nem ao menos tinham condições de comprar um caderno à parte para escrever seus diários.” 

Atividade no Dia de Leitura organizado pela escola: conquista de vocabulário e ampliação de repertório. Foto: Cláudia Dapper

Com os mesmos alunos agora no 7º ano do fundamental em 2023, a professora Cláudia tem levado para a sala de aula também contos literários que são lidos por ela e pelos alunos durante as tertúlias. Eles continuam dedicados e procuram produzir textos na estrutura correta, de acordo com as orientações da professora. “Há ainda alguns erros e repetições de ideias, mas estamos trabalhando para que melhorem. A prática de relatar, redigir acontecimentos cotidianos ou mesmo expressar os sentimentos os torna mais autoconfiantes. Só tenho orgulho e alegria quando vejo a produção de alunos que eram do 6º ano e que hoje, no 7º, conseguem escrever textos tão bem elaborados.” 

Outros educadores seguem as mesmas diretrizes na escola da professora Cláudia. Como a colega Janiele Da Hora, que reforçou a prática de leitura, escrita e tertúlias literárias com seus alunos do 6º ano, em 2022, conseguindo ótimos resultados. “As tertúlias foram significativas. Os alunos participaram ativamente, exercitaram a oralidade, a escuta respeitosa e o diálogo para a construção coletiva do conhecimento.” 

Iniciativas como essas fazem parte do projeto Compromisso com a Educação Pública, iniciado em 2018 para promover a qualidade educacional com a formação continuada de profissionais da rede de ensino no sul da Bahia.  O projeto é realizado pela Secretaria Municipal de Educação e Agência de Desenvolvimento Regional Sul da Bahia (ADR Sul da Bahia), em parceria técnica com o Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (Icep). Desenvolvido inicialmente pelo Instituto Arapyaú, a iniciativa também conta com o apoio da Mondelez Internacional. Graças a ela, Una está entre as dez cidades que alcançaram as metas educacionais de 2019 do Ideb, na sexta posição. 

Para a diretora pedagógica da Secretaria Municipal de Educação de Una, Sandra Silva Batista, o projeto se mostrou fundamental para atingir esses números no município, especialmente no âmbito da disciplina de português. “Una é um município majoritariamente rural, e a grande maioria dos alunos do fundamental dos anos finais reside na zona rural, onde há duas escolas, uma delas onde a professora Cláudia atua. São estudantes com pouco acesso à leitura no âmbito familiar.” 

A diretora pedagógica reconhece os avanços no trabalho com a leitura e a escrita na rede de ensino. “Os alunos adquiriram maior desenvoltura na oralidade ao expor suas opiniões, sem medo e com posicionamento crítico diante dos questionamentos. Conquistaram um vocabulário mais amplo na produção de textos, usando criticidade para produzi-lo e lendo com maior fluência.” 

A professora Cláudia Dapper prossegue com o uso das mesmas ferramentas neste ano de 2023, já que ainda está em processo de diagnosticar as capacidades de seus novos estudantes do 6º ano. “Sinceramente, vou apostar novamente no diário para melhorar alunos que chegam a mim com sérias deficiências de alfabetização.”

Saiba mais

Leia mais

Assine nossa newsletter

Com ela você fica por dentro de oportunidades como cursos, eventos e conhece histórias inspiradoras sobre profissionais da educação, famílias e organizações da sociedade civil.