

Por Gustavo Queiroz, Rede Galápagos, Curitiba
Em maio de 2018, quatro crianças brincavam sobre uma fossa séptica em uma creche conveniada do município de Fortaleza, localizada na periferia da cidade. O tampo cedeu e uma das meninas perdeu a vida. “Como posso dizer? Transformamos o luto em luta”, lembra Cristiana Alves, uma das mães que atuaram pressionando as autoridades responsáveis por melhores condições de ensino para o bairro. No meio da tragédia, a presença ativa do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) funcionou como um alívio para as famílias. “Eles caminharam conosco, apoiaram jurídica e psicologicamente, nos deram cursos de formação para nos ajudar a seguir em frente.” Resultado disso, dois anos depois o grupo conseguiu um Centro de Educação Infantil (CEI) novo, estruturado, em meio à pandemia da Covid-19.
A coordenadora-geral Mara Carneiro lembra que na ocasião o Cedeca fez uma série de ações sociais locais, todas as famílias foram atendidas e teve início um processo de acompanhamento com as chamadas “mães da educação”. “Esse é um tipo de ação na educação que o Cedeca faz: atender a uma vítima de violação direta e transformar o que era um caso individual em coletivo”, afirma. Afinal, o que aconteceu com aquelas meninas poderia acontecer com várias outras. A forma como a organização conduz esses desafios é modelo para todo o Brasil. Primeiro, atua com a prevenção, para que o direito não seja violado. Depois, se houver uma situação de violência, apoia as comunidades locais com capacitação, faz a ponte com as autoridades responsáveis e apresenta soluções com base em evidências para melhorar as políticas públicas. Os impactos são perceptíveis.

Projetos estratégicos
A quantidade de estratégias com foco na defesa e proteção de meninas e meninos dirigidas pelo Centro não cabe em um parágrafo. “O Cedeca ajuda tantas comunidades de tantas causas! A parceria com eles foi fundamental para nós, como está sendo fundamental para praticamente toda a Fortaleza, não é?”, pergunta Cristiana Alves. “Sem o Cedeca eu nem imagino como seria a minha vida, sabe?”, conclui Igor Freire, de 19 anos, ator e membro do grupo de teatro Trup’irambu. Em qualquer cenário, esse mural de experiências evidencia um indicador imbatível: o Cedeca é capaz de aproximar as infâncias de seus direitos constitucionais. E, por fazer isso desde 1994, é referência absoluta entre as organizações da sociedade civil que seguem os mesmos passos.
A história do Cedeca se confunde com a do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já que foi fundado quatro anos depois da lei, no mesmo dia 13 de julho. “Desde aquela época temos uma missão que reafirmamos até hoje, que é defender os direitos de crianças e adolescentes quando o Estado é o violador dos direitos ou quando ele é omisso nas suas garantias”, explica a assistente social Mara Carneiro, que atua no Cedeca desde 2003. O foco da organização é o mesmo previsto na lei: a prioridade absoluta de crianças e adolescentes — em especial aquelas em situação de vulnerabilidade.
Temas
Se existe um tema a ser trabalhado, uma equipe de 33 pessoas se organiza em diversas frentes para acompanhar grupos comunitários e marcar presença em redes e espaços de decisão. São exemplos o direito à educação pública gratuita e de qualidade, o enfrentamento às violências, as políticas socioeducativas e o monitoramento do orçamento público destinado a crianças e adolescentes. Tais propostas se traduzem em formação de jovens, empoderamento feminino, apoio a projetos de educação popular, produção de conhecimento, campanhas de comunicação, incidência política e até atendimento jurídico e psicossocial à população.
Igor Freire carrega no seu projeto de vida a escolha por uma educação mais próxima da realidade. Estudante de letras na Universidade Federal do Ceará, Freire participa ativamente do Trup’irambu, grupo de teatro político apoiado pelo Cedeca. A trupe quer ressignificar a percepção sobre o Pirambu, bairro próximo ao centro de Fortaleza, mas que é entendido como periférico pelo estigma de ser “violento”. “Por causa disso o bairro foi sumindo, sumindo do mapa”, lamenta o ator. Com a chegada do Cedeca e o fomento ao grupo, os participantes usaram a arte como forma de recontar a história do território. “Criamos um vínculo com os educadores. O mais legal é que tudo era feito por nós e para nós. Isso é o mais importante”, conclui. O Centro Cultural Chico da Silva concentrava as apresentações e atividades antes do período de pandemia da Covid-19.

O que a realidade mostra é que o Cedeca cria bases em um território diverso e em meio a ventos pouco favoráveis. Bairros como o Parque Santa Maria e o Pirambu carregam marcas do esquecimento do setor público — encaram baixas taxas do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e um alto número de violência contra adolescentes, conforme lembra Mara Carneiro. A resposta vem de forma criativa, por meio da arte, do teatro e da formação política. Os beneficiados encontram nesses projetos uma forma de dizer: “resistimos”. “A comunidade de periferia tem suas dificuldades, mas tem a sua força, não é? Se não fosse a força dos moradores, dos pais e mães, nós não teríamos conseguido essa conquista, que é o CEI”, lembra Cristiana.

Estrutura e sustentabilidade
Coordenar tantos projetos é um desafio para qualquer instituição que precisa respaldar as ações em uma estrutura sólida. Depois de vencer o Prêmio Itaú-Unicef em 1997 e em 2018, o Cedeca agora é uma das organizações que participam do Missão em Foco. O programa do Itaú Social institui planos de desenvolvimento nos processos organizacionais, que vão desde questões administrativas até aspectos pedagógicos. Com o fomento, a organização consegue manejar melhor seus recursos e gerar frutos aos projetos da ponta.
O Cedeca se organiza em seis núcleos. Todos trabalham de forma integrada. Os três primeiros têm foco na formação, atendimento e monitoramento. Juntos, tiram do papel projetos de acompanhamento comunitário, acolhimento de demandas da população e realização de diagnósticos e relatórios de acompanhamento da execução das políticas. Este último também monitora a execução do orçamento público.
Tudo que é observado nesse trabalho acaba se tornando objeto do núcleo de incidência, como estratégia de controle social. “Então é a parte que tem todo o nosso trabalho em rede, tanto municipal quanto estadual e também nacional.” O quinto núcleo é o da comunicação, responsável não apenas por publicar os materiais, mas também por pautar a agenda pública com temas relevantes, qualificando o debate e funcionando como estratégia de ação.
Completa essa lista o núcleo de sustentabilidade. Aqui se concentram a captação de recursos e a manutenção dos insumos para a execução das atividades. Nenhuma equipe trabalha de forma isolada. Um exemplo é a forte incidência que o Cedeca realizou em 2016 após a eclosão de 80 rebeliões de adolescentes em medida socioeducativa no estado do Ceará. Com as informações coletadas pela equipe de monitoramento e atendimento, conseguiu posicionar a pauta na imprensa e, em rede, levou uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pedindo melhores condições.

A denúncia de violação de direitos deu resultado. “Por causa disso, o governo do estado mudou a gestão do sistema e passou a ter, por exemplo, uma superintendência responsável pelo atendimento”, lembra Carneiro. Também foram realizadas formações com as mães dos adolescentes privados de liberdade.
Permanecer
O Cedeca destaca dois fatores como sendo o diferencial para atuar no território. O primeiro é não ter medo de ir para a rua e assumir as pautas da comunidade como pautas da própria instituição. O segundo é que o centro permanece nos lugares em que atua. “Aqui o Cedeca continua, não desapareceu de jeito nenhum, principalmente neste período da pandemia, que é um período em que todos nós nos afastamos de tudo. O Cedeca sempre esteve ali, pronto para ajudar”, conta Cristiana.
“Quando o Cedeca começou a atuar em Fortaleza, nós íamos para a comunidade com aqueles bonecos de Olinda, com carro de som, dizendo que a educação era um direito.” Como não havia escola para todos, o Centro cadastrava quem estava fora dela, juntava os protocolos de matrículas e fazia pressões para conseguir a inclusão de todos e todas no sistema básico de ensino.
Hoje, em um período de pandemia em que as necessidades são limites, a existência de organizações como o Cedeca, que atende diretamente vítimas de violências, são premissas para a garantia de direitos. Não apenas porque encaminha as emergências, mas também porque atua na outra frente, pressionando os responsáveis para mudarem as políticas.
Saiba mais
- Site Cedeca — Ceará
- Programa Missão em Foco
- Conheça o curso Redes de proteção