

Por Paula Salas, Rede Galápagos, São Paulo
Quem passa na rua nem imagina que atrás de um discreto portão se esconde uma vila de muito acolhimento e aprendizagem, como descreve Rachel Carneiro, responsável pela captação de recursos e desenvolvimento institucional do Lar Sírio Pró-Infância, organização da sociedade civil situada no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. A instituição ocupa 25 mil metros quadrados divididos em 18 prédios pequenos pelos quais crianças, jovens e adultos circulam diariamente.
A história da organização teve início há quase cem anos, em 1923. Nasceu com o nome de Orphanato Syrio, inaugurado por um grupo de refugiados sírios. “Eles foram muito bem acolhidos, fizeram suas famílias aqui e perceberam que este novo país seria onde manteriam seu legado”, conta Elaine Bueno Silva, superintendente do Lar Sírio, sobre a missão da instituição. Dessa forma, eles quiseram retribuir a recepção e deram início a diversas ações sociais. Uma delas foi abrir um orfanato para cinco crianças sírias. “Com o tempo, o número de órfãos subiu para mil crianças”, relata a superintendente. Esse é o número de pessoas que são atendidas hoje.
De lá para cá são quase cem anos, e muita coisa mudou. De um orfanato, tornou-se um abrigo, onde as crianças viviam e visitavam a família nos finais de semana. Em 2015, a última criança abrigada completou 18 anos e a organização passou a atender crianças e adolescentes no contraturno escolar, isto é, no período oposto àquele em que estudam — quem estuda de manhã vai à tarde, e vice-versa. O perfil de quem participa das atividades também mudou. Hoje são todos brasileiros e têm entre 4 e 14 anos.
Rotina das crianças
Gabriel Hideki, de 17 anos, teve seu primeiro contato com o Lar Sírio em 2012, quando ele e seus dois irmãos passaram a participar das atividades no período matutino. “Eu acordava às sete da manhã e vinha para o Lar. Fazia atividades de percussão, dança, culinária. Depois, às 13 horas, eu ia para a escola”, lembra o jovem. Quando as crianças chegam à instituição, elas são recepcionadas com uma refeição balanceada pensada pela equipe de nutrição. Em seguida, seguem a programação do dia.
Diariamente, cumprem uma grade de atividades, com duração de uma hora cada uma, que acontecem em um dos 13 ambientes de aprendizagem — entre eles, tem a Casa Brincante, o Ateliê de Artes, o de Musicalidade, de Bem-estar, do Meio Ambiente. As atividades incluem desde informática até educação alimentar e aulas sobre meio ambiente, dança e iniciação musical, além de propostas voltadas para o bem-estar mental das crianças e o apoio emocional às crianças.
Dentro de cada um desses espaços, os alunos recebem o acompanhamento de um professor responsável por apoiar e fazer intervenções que permitam a aprendizagem das crianças. “As atividades são planejadas previamente por educadores sociais e por um auxiliar de psicologia, que fazem um trabalho interdisciplinar”, diz Elaine. Dessa forma, a agenda diária de cada criança é planejada por uma equipe multidisciplinar formada por assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas e pedagogos.
Na grade, as crianças e adolescentes também têm momentos livres, quando podem explorar ambientes como a Casa Brincante e o Ateliê de Artes, ou brincar no pátio. “Eles têm essa autonomia de fazer o que têm vontade”, conta Elaine. Antes de irem para casa ou para a escola, as crianças fazem mais uma refeição balanceada.
Quem tem mais de 15 anos pode participar dos cursos profissionalizantes, que são realizados, dentro do espaço do Lar, por parceiros como Senai, Senac e Sebrae. As vagas são ocupadas prioritariamente por adolescentes que passaram pela instituição. Quando ainda há vagas nas turmas, abrem as inscrições para adultos da comunidade.

“Temos cursos de panificação, confeitaria, diversos tipos de cozinha, enfermagem, jardinagem, organização de fluxo de caixa, de finanças. É uma grade bem ampla”, comenta Elaine. Em paralelo, também há educadores que ajudam os jovens a desenvolver habilidades importantes para ingressar no mercado de trabalho. “Como se portar em uma entrevista, melhorar a leitura e escrita. São formações que complementam a profissionalização”, explica a superintendente. Gabriel é um dos jovens que participaram das formações oferecidas pelo Lar Sírio. Além disso, também realizou cursos técnicos sobre contabilidade e de assistente administrativo.
Hoje, Gabriel é estagiário do Lar. “Eu trabalho em dois departamentos, no de desenvolvimento institucional com as mídias sociais e no de atendimento de TI”, conta. Ele cumpre suas horas de estágio de manhã e, no período da tarde, vai à escola, onde cursa o segundo ano do ensino médio. “O Lar Sírio mudou minha vida. Eu aprendi muito”, resume o adolescente.
Para o futuro, ele pretende fazer uma formação em programação e depois cursar uma faculdade de psicologia. “São áreas que me interessam muito”, diz. Até lá, quer continuar trabalhando na instituição para contribuir para a renda familiar.
Atuação durante a pandemia e o legado
Durante a pandemia, o Lar se reinventou para poder garantir o apoio às famílias mais vulneráveis — que são em sua maioria mães solo. “Tentamos apoiar e disponibilizar atividades lúdicas que pudessem fazer em casa, aumentamos a distribuição de cestas básicas e tivemos um programa de acolhimento das mães que perderam o emprego”, conta Rachel.
Ao mesmo tempo, do ponto de vista interno, a organização teve o desafio de manter um time ativo de voluntários — os quais são responsáveis em ajudar tanto em tarefas mais administrativas como, por exemplo, a distribuição das cestas básicas, quanto nas atividades de recreação das crianças.
Outro movimento necessário foi a busca por diversificar a arrecadação de recursos. Entre as fontes de renda, além de doações, vendas em bazares e lojas e outras captações de recursos via parceiros, o Lar Sírio faz parte do programa Comunidade, Presente!, iniciativa do Itaú Social que apoia organizações da sociedade civil (OSCs) que atuam na área da educação de crianças e adolescentes.
Os princípios por trás de todo o trabalho
Antes e durante a pandemia, o Lar Sírio tem orientado suas ações no sentido de enfrentar as desigualdades e promover uma vida mais cidadã e digna para a comunidade na qual se insere. “Trabalhamos com os três A’s. O acolhimento, o acompanhamento e a autonomização”, diz Elaine.
Em 2018, a equipe pedagógica propôs que nos cinco anos seguintes fosse introduzido anualmente um dos cinco valores universais defendidos pelo educador indiano Sri Sathya Sai Baba. O tema anual de 2019 foi a não violência; em 2020, a verdade; em 2021, a paz. Vale destacar que o princípio do ano anterior não deixava de fazer parte da rotina do Lar; eles iam se somando.

Em 2022 as atividades serão propostas para refletir sobre a retidão. “Todo o trabalho é planejado com base no valor e nos subvalores. Por exemplo, pensar o que é retidão quando falamos de meio ambiente: é jogar o lixo no lugar adequado, plantar, ter respeito com toda a vida, amar os animais”, explica a superintendente. Em 2023, o ano do centenário do Lar e quando todos os valores passarão a estar na rotina das atividades socioeducativas, o grande assunto será o amor.
Neste ano, além das atividades de rotina, as crianças estão realizando intervenções na comunidade onde o Lar está inserido. “Uma vez por mês vamos aos entornos e fazemos uma abordagem aos moradores do bairro ou a quem trabalha próximo”, conta Elaine. Já tiveram uma ação de Carnaval, com um bloquinho “verde”, com a temática sustentabilidade. Em março fizeram uma campanha de conscientização com frases que revelavam a discriminação contra a mulher. “Temos um calendário de ações até o final do ano com diversas intervenções para ter um bairro socioeducativo”, explica Elaine Bueno Silva.