Cátia de Azevedo Fronza e Sabrina Cecília Moraes Bastos
Cátia de Azevedo Fronza é doutora em letras e professora do PPGLA (Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada) da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos)
Sabrina Cecília Moraes Bastos é doutoranda em linguística aplicada no PPGLA-Unisinos e professora em escola de atendimento socioeducativo na rede pública estadual no estado do Rio Grande do Sul


Por Maggi Krause, rede Galápagos, São Paulo
É a escola que deve se adaptar ao perfil de alunos que chegam, ou são ou alunos que devem se adaptar à escola, sob pena de fracasso escolar se não se adaptarem? A questão se torna ainda mais desafiadora quando se trata de adolescentes em situação de privação de liberdade, que já vêm de um contexto de vulnerabilidade e violência e estão, em geral, fora da escola e com grandes defasagens. Essa foi apenas uma das reflexões que emergiram do projeto “Novos significados para alunos dos anos finais do ensino fundamental no contexto da socioeducação: linguagens para autonomia e cidadania”, realizado pela professora e doutora Cátia de Azevedo Fronza e pela mestra Sabrina Cecília Moraes Bastos.O estudo foi um dos 14 contemplados pelo edital Anos finais do ensino fundamental: adolescências, qualidade e equidade na escola pública, do Itaú Social em parceria com a Fundação Carlos Chagas. Ele foi realizado na escola EEEM (Escola Estadual de Ensino Médio) Tom Jobim, localizada em uma unidade de internação socioeducativa em Porto Alegre (RS). Para procurar entender o que levou à evasão escolar e a cometer atos infracionais e também saber sua visão sobre a escola, a vida e seus interesses, a equipe de pesquisa organizou rodas de conversa com os jovens e pediu que fizessem representações (usando colagens e desenhos, principalmente). Atividades de leitura, escrita e de criação visual e o levantamento do perfil socioantropológico dos estudantes foram algumas das dezenas de ações do projeto.
“Nosso objetivo foi voltar a atenção para as juventudes dentro do espaço de socioeducação, não só para combater a exclusão e a invisibilidade, mas para mostrar que é necessário colocar mais lentes sobre as práticas nessas escolas, para que se tornem mais adequadas e qualificadas”, explica Sabrina, cuja pesquisa para o mestrado inspirou o projeto. Em plena pandemia, o curso de formação de professores e profissionais que trabalham no complexo de internação, “Diálogos sobre o contexto socioeducativo: reflexões sobre linguagem, ensino e cidadania”, organizado pelas linguistas, proporcionou discussões sobre o fazer pedagógico nesses espaços.
Mas o principal benefício para estudantes e professores foi a instalação de um laboratório multimodal na instituição, com capacidade para receber dez estudantes e um professor, tendo à disposição notebooks individuais, acesso à internet e equipamentos de geração de áudio e vídeo. Os recursos do edital tornaram possíveis o laboratório e os livros editados sobre a experiência na escola, com artigos de professores e de profissionais que trabalham em espaços socioeducativos (veja link ao final deste texto, em Saiba mais). “Foi um trabalho colaborativo em todas as instâncias e contamos com o cuidado e a flexibilidade da supervisão do Itaú Social e da Carlos Chagas para reconfigurar o projeto durante a pandemia”, conta Cátia, que conduziu o trabalho numa perspectiva interdisciplinar com a linguagem. “A maioria dos jovens que responderam à pesquisa para o perfil socioantropológico não tinha lido um livro inteiro, então era essencial promover atividades de leitura e escrita.” Saiba mais sobre o desenrolar do projeto na entrevista a seguir.
NO que são representações multimodais e qual sua importância para o projeto Novos Significados?
Sabrina — Em 2019, fizemos rodas de conversas com os alunos e cada turma verbalizava diferentes percepções sobre a escola da rua, sobre a escola lá dentro, alguns até diziam que parecia um filme repetido. Em paralelo, convidamos os estudantes para produzir representações multimodais, ou seja, que não ficam restritas a uma só linguagem, abrindo possibilidades para escrita, imagens, desenhos, depoimentos etc. Oferecemos revistas e materiais para fazer colagens e desenhos e os provocamos a representar como seria uma escola ideal para eles, o que deveria ter e o que não deveria acontecer no cotidiano escolar. Saiu um material muito rico, que revelou questões como o racismo e a violência na escola, o bullying e a falta de segurança, a valorização da interação entre os jovens, do recreio e da educação física como espaço lúdico. Também expressaram o desejo por uma infraestrutura escolar com mais recursos de aprendizagem, como biblioteca e laboratórios com tecnologia, pois no lugar onde vivem isso é escasso.
Cátia — Isso aconteceu bem no início do projeto, pois orientaria a nossa caminhada posterior. Na verdade, por causa da pandemia, esse foi o momento em que mais tivemos interação com os estudantes, e os registros deles rendem muitas reflexões e discussões até hoje. Partilhamos com os professores essas representações, alguns compreenderam e se reconheceram, outros se surpreenderam com a variedade de respostas dadas pelos jovens.
NQuais são, na opinião de vocês, os maiores problemas da educação em contexto socioeducativo no Brasil?
S — Atuei por dois anos como professora em escola de atendimento socioeducativo e acompanhei essa rotina de perto durante o mestrado por mais dois anos. Existe uma diversidade de problemas, pois são jovens sujeitos a percursos de periferia, de vulnerabilidade, com exposição ao tráfico e à violência e que passaram a praticar delitos. Quando eles chegam à internação, retomam a frequência da escola por força da lei, não tanto pela vontade, e já vêm com uma defasagem idade-ano escolar em média de 2 anos. Como em geral têm mais de 15 anos, passam a integrar a Educação de Jovens e Adultos, a EJA. Mesmo inserida nesse contexto da internação socioeducativa, nem a escola nem o professor estão preparados para trabalhar com a realidade trazida por esses jovens. Na minha tese de doutorado, vemos pelas performances narrativas deles que a instituição escolar e a perspectiva tradicional de ensino não são significativas para eles. Além da defasagem, existe a rotatividade, pois o jovem fica seis meses, às vezes transitando entre centros de internação, entre turmas. Então o professor a cada dia pode encontrar outros alunos, a constância necessária para uma prática de ensino consistente se rompe e fica difícil planejar, avaliar e dar continuidade. Um dos pontos mais sensíveis para os alunos são as práticas sociais de leitura e escrita, pois muitos que entram na etapa correspondente ao 6º ano apresentam aprendizagem dos anos iniciais, ou seja, não conseguem acompanhar o currículo do 6º ano.
Os estudantes em medida socioeducativa e a escola
Veja algumas características de quem estava na EEEM Tom Jobim, localizada dentro da Fase (Fundação de Atendimento Socioeducativo), com base nas respostas ao questionário socioantropológico. Aplicado de abril a junho de 2021, ele foi desenvolvido pelos professores Yuri Figas, da área de ciências humanas, e Angélica Melo, da área de linguagens, e continha 33 perguntas. Obteve 48 respostas, de 42 meninos e 6 meninas. Na época, havia 58 jovens matriculados.
- 77% dos alunos estão nos anos finais do ensino fundamental
- 71% não estavam estudando antes de entrar na Fase
- 83% têm histórico de repetência e, destes, 44% estão no 6º ano, considerado um gargalo no ensino fundamental
- 82% desejam voltar a estudar para ter um futuro melhor
- 18% disseram não gostar de estudar ou não acham a escola interessante
“Na prática, a cultura prisional e punitiva ainda é muito forte. Foi importante refletir com esses profissionais sobre questões na perspectiva educacional tendo a linguagem como eixo.”
NComo a criação de um espaço de uso da linguagem com recursos tecnológicos, voltado para os multiletramentos, modifica as rotinas e potencializa a aprendizagem dos jovens?
C — Ora chamamos o laboratório de multimodal, ora de multiletramentos, pois ele permite o uso de computador, filmadora, câmera fotográfica e outros recursos (é multimodal), em vista de multiletramentos que essa digitalidade pode fornecer. Essa interação com a tecnologia não ficou restrita ao espaço, pois adquirimos notebooks para circular pelos demais ambientes da escola, já que o laboratório foi instalado na ala feminina. Embora com limitações de acesso, eles podiam fazer atividades ligadas à cultura digital. É sabido que os jovens têm celular, mas muitas das adolescentes internadas nunca tinham usado o computador e não sabiam nem digitar. O acesso a essa ferramenta, mostrando suas potencialidades, abriu um mundo de descobertas para essas estudantes.
NQuem participou e quais foram as consequências do curso “Diálogos sobre o contexto socioeducativo: reflexões sobre linguagem, ensino e cidadania”, que consistiu em uma formação de professores que trabalham em contexto socioeducativo?
S — Na rede pública estadual, eu não conhecia um curso de formação próprio para o contexto da socioeducação, mas sempre desejei que ele existisse! Foi um curso de extensão universitária, com objetivo de formação de professores e serviu como espaço de diálogo, interação e reflexão. Aproveitamos a pandemia e usamos o Moodle da Unisinos para organizar os encontros mensais (por 12 meses), com provocações e conhecimentos sendo construídos a partir das reflexões e das vivências dos participantes em sala de aula. Convidamos todos os professores da escola, das diversas áreas de conhecimento, e os participantes não se restringiram aos docentes da Tom Jobim. Eram em torno de 40 a 50 pessoas a cada encontro, incluindo alguns pedagogos e agentes socioeducativos, que monitoram e acompanham os jovens internados. Mesmo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na prática a cultura prisional e punitiva ainda hoje é muito forte, então foi importante refletir com esses profissionais sobre questões na perspectiva educacional tendo a linguagem como eixo.
“Esse diálogo acentuou que é necessário olhar as nuances do pensamento desses jovens e trabalhar com as práticas educacionais a partir daí.”
NPoderia dar um exemplo de discussão que foi ampliada durante o curso e tem potencial para transformar o ensino?
C — Apresentamos aos professores as representações multimodais dos estudantes e eles contavam as suas práticas. Acredito que o diálogo promovido pelo curso os fez enxergar novas formas de trabalhar. As reflexões sobre a leitura e escrita foram recorrentes: um encontro abordou o que era ler para aquele aluno e o que significava ler para o professor, por exemplo. Compartilhamos o projeto Ler… Literatura e Ciência, com dicas de trabalho, e isso foi muito bem recebido, com as professoras realizando as atividades com a turma e dividindo práticas, experiências e sugestões. O que ocorria nas aulas impulsionava as discussões. Encaminhamos formulários para perguntar a professores e estudantes sobre quais recursos gostariam de ter no laboratório, por isso digo que se criou essa conexão com a escola que transforma, o que também virou título dos nossos livros.
NQue mudanças práticas foram percebidas na EEEM Tom Jobim, no complexo de internação da Vila Cruzeiro do Sul, em termos de oferta (também de infraestrutura) e de atitude diante do ensino e aprendizagem (por professores, funcionários, estudantes)?
S — Acompanhamos o que aconteceu depois, pois os relatos deram origem ao livro, que tem cinco capítulos escritos por grupos de professores e dois por agentes de ação socioeducativa, que descreveram os projetos, os seus atravessamentos e dividiram esse olhar do contexto por dentro. Em termos de prática, os professores assumiram protagonismo e passaram a desenvolver projetos que foram ganhando força desde a chegada do Novos Significados, daí o curso de extensão e a montagem do laboratório. Todos esses movimentos motivaram a equipe diretiva da escola a requerer esse projeto, gerando um movimento maior e mais dinâmico como resultado, alicerçado pelo laboratório e pelos notebooks. Do ponto de vista dos estudantes é preciso considerar a rotatividade, mas o que eu pude presenciar no momento das aulas e no laboratório multimodal foi que houve grande engajamento em participar, em responder à pesquisa, em construir conhecimento e buscar alternativas para solucionar problemas, ou seja, um comportamento mais autônomo e interessado.
“Quando acontece um fato novo num espaço de privação de liberdade, é como se se ampliassem um pouco mais as fronteiras deles, colocando em contato com outros mundos, outras ideias e elementos.”
NO objetivo central do projeto foi alcançado? (Implementar uma metodologia de ensino capaz de estimular a autonomia e o protagonismo e motivar o sentido de cidadania juvenil em escola de contexto de socioeducação, por meio das linguagens que permeiam práticas pedagógicas em diferentes áreas de conhecimento e seus respectivos componentes curriculares)
S — Devido ao contexto de privação de liberdade, a experiência do projeto foi desenhada para ser presencial, e nesse aspecto foi prejudicada pela pandemia. Digo que fomos até certo ponto, pois o objetivo de implantar uma metodologia é processual. Não é possível estabelecer uma fórmula, mas apontar direcionamentos metodológicos. São necessários novos percursos de pesquisa com presença de alunos e docentes, mas acho que o projeto conseguiu gerar reflexão e ampliar o olhar dos professores. Eles podem trazer para a sala de aula discussões de gênero, sexualidade e raça, saber que as estruturas de pensamento enraizadas estão sendo reproduzidas e se questionar: o que posso fazer enquanto professor para mudar isso? Tendo visto as representações dos jovens e reconhecendo que eles têm outra vivência, totalmente diferente da deles, será que vão querer impor seu pensamento sobre o deles? Acho que esse diálogo acentuou que é necessário olhar as nuances do pensamento desses jovens e trabalhar com as práticas educacionais a partir daí.
Objetivos específicos da pesquisa Novos significados
1. Investigar o percurso de vida dos adolescentes, considerando a etapa de vida anterior à internação, buscando informações como tempo fora da escola, motivo da evasão e idade em que ocorreu;
2. Identificar os interesses dos adolescentes em relação à vida, à escola, aos colegas e a áreas de conhecimento; verificar sua percepção sobre educação e violência e sua inserção social com qualidade de vida;
3. Criar um espaço de uso da linguagem com recursos tecnológicos, voltado para os multiletramentos, em interação presencial e virtual, para promover experiências de aprendizagem que (re)signifiquem a escola sob o ponto de vista dos adolescentes;
4. Oportunizar diversas práticas de leitura, escrita e oralidade, em interações produtivas entre os pares, dando significado à linguagem na escola e para além da escola;
5. Implementar grupos de discussão com educadores das escolas de Fase, pesquisadores interessados e outros trabalhadores da socioeducação, para compreender e contribuir para o desenvolvimento dos alunos nesse contexto e ouvir especialistas convidados, motivando reflexões e promovendo novos significados na atuação dos profissionais envolvidos.
NEntre os objetivos específicos, quais foram as conquistas mais relevantes, em especial para a continuidade dos multiletramentos e o aprimoramento de práticas de escrita, leitura e oralidade?
C — Fomos mais felizes nos específicos do que no objetivo geral. Eu diria que todos foram significativos, conseguimos alcançar essa lista inteira (leia no quadro acima), envolvendo os estudantes na pesquisa antropológica e nas representações multimodais e os professores em discussões nos encontros formativos. Mas o laboratório foi a menina dos olhos do projeto e ressalto também a potencialidade que ele trouxe para os professores. Para muitos possibilitou o acesso à informação e à interação on-line.
“Nos anos finais, devemos ter propostas para o letramento dos estudantes, pois a leitura e escrita são recursos importantes para eles compreenderem os sentidos da cidadania.”
NPara os jovens, qual foi a etapa na qual mais se engajaram e o que ficou de mais significativo com a realização do projeto Novos Significados?
C — Foram as próprias representações multimodais, em que mostraram o seu olhar sobre a escola. E também a participação deles na criação da identidade do Novos Significados, pois eles votaram nas produções, escolhendo a melhor, que se tornou a logomarca que adotamos no projeto. Todas as formas de participação impactaram os estudantes. Tenho um exemplo curioso: quando convidamos para responderem a um questionário sobre o que achavam que deveria ter no laboratório, um dos meninos, que estava em isolamento na internação, ficou intrigado diante do pedido da professora: “Mas vocês estão mesmo querendo saber o que eu penso?”, ele perguntou. Quando levamos as camisetas do projeto, eles mostraram que esse tipo de interação é bem-vindo. Eles se sentem mais visíveis e, quando se dá oportunidade a eles, fazem jus a ela.
S — Os estudantes, que estão longe de casa, dos amigos, dos seus interesses e da sua comunidade, foram sempre receptivos e interessados em participar das atividades do projeto. Quando acontece um fato novo num espaço de privação de liberdade, é como se se ampliassem um pouco mais as fronteiras deles, colocando em contato com outros mundos, outras ideias e elementos.
NEntre as recomendações da pesquisa, quais considera mais urgentes e que podem ser aplicadas em qualquer contexto socioeducativo?
S — A escola é uma instituição dentro de outra, que é o complexo de internação, e a interação entre ambas muitas vezes não é plena. Mas a lei atesta “internação do jovem em estabelecimento educacional”, por isso achamos que é necessária maior aproximação da escola com a instituição de atendimento socioeducativo. Ali as práticas ainda estão mais focadas no policiamento e no monitoramento do jovem. Além disso, a educação remete à escola tradicional, com salas de aula limitadas a quadro e canetão, quando se sabe que isso não motiva a aprender. Também considero muito necessária a formação de professores para esse contexto de socioeducação.
C — Precisa ser uma formação de professores para dar-lhes protagonismo para que de fato possam se autorizar a propor e a agir. Nos anos finais, devemos ter propostas para o letramento dos estudantes, pois a leitura e escrita são recursos importantes para eles compreenderem os sentidos da cidadania. De certa forma, o que se vê na escola de socioeducação não é diferente das outras escolas em termos de defasagens e de dificuldades, com o adicional que é a questão da privação de liberdade. Por isso é necessário um olhar diferente para melhorar a qualidade de formação, de preparação e de inserção desses estudantes, porque depois eles saem e vão para outra escola, para a rua e para a sociedade.
Saiba mais
- Sumário executivo da pesquisa Novos Significados
- Livro Conexões com a escola que transforma, textos com reflexões sobre linguagem, juventudes, práticas pedagógicas e de pesquisa escritos por pesquisadores, professores e agentes de atendimento socioeducativo, atuantes no espaço da escola parceira
- Livro 2 – Conexões com a escola que transforma – pesquisas e práticas de linguagem com a Socioeducação, com relatos de experiências e vivências de profissionais da rede pública estadual.
- Projeto Ler… Literatura e Ciência