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Quando a autoestima da escola faz diminuir a evasão

Regimes de tutoria da Emef Espaço de Bitita — instituição referência no trabalho de inclusão e acolhimento — ajudam mais alunos imigrantes e refugiados a permanecer na escola


Nova identificação da escola, após anos de luta pela troca do nome. Foto: Divulgação Emef Espaço de Bitita

Por Livia Piccolo, Rede Galápagos, São Paulo

Mais de 37% dos alunos da Emef Espaço de Bitita, localizada no bairro do Canindé, na Zona Norte de São Paulo, são imigrantes. Suas famílias vêm da Bolívia, Equador, Egito, Argentina, Angola, Afeganistão, entre outros países. Se a evasão de alunos é um problema para diversas escolas públicas brasileiras, na Emef Espaço de Bitita o desafio é maior ainda. Como fazer com que um aluno que está aprendendo a falar português e muitas vezes não tem residência fixa permaneça estudando? Quais são os desafios que uma família imigrante enfrenta? Como integrar culturas tão diferentes em sala de aula? Com práticas de tutoria que incluem visitas domiciliares às famílias imigrantes, a escola conseguiu frear a evasão de alunos. A diversidade de culturas é parte constitutiva da escola e foram os estudos sobre os movimentos migratórios que, inclusive, deram novo nome à instituição. 

A escritora Carolina Maria de Jesus foi uma migrante, assim como diversos alunos da Emef. Colocar o nome dela à frente da instituição revelou-se um processo de reconhecimento, reescrita e validação não só da escola como também de seus próprios alunos. Assim como a Emef ganhou um novo nome para reescrever seu passado e seu futuro, as famílias que desembarcam no Brasil fugindo de guerras e conflitos em seus países estão em busca de um futuro diferente.

Festa das Nações realizada em junho de 2023. Foto: Divulgação Emef Espaço de Bitita

Além disso, toda a mobilização deu-se de maneira coletiva e participativa, o que contribuiu para que os alunos pudessem se sentir ouvidos e pertencentes ao espaço escolar. A autoimagem e a autoestima da comunidade escolar foram positivamente afetadas com a mudança de nome, o que desempenha um papel importante nas práticas para a diminuição da evasão escolar. É preciso que um estudante se reconheça no espaço para que ele queira e possa permanecer nele.

A escola escolhe seu próprio nome
Antes de se chamar Emef Espaço de Bitita, a escola tinha outro nome: Infante Dom Henrique. Quem conta a história da mudança é o coordenador do ensino fundamental, Carlos Eduardo Fernandes, o Cadu. “Essa luta começou ainda em 2015, quando a escola vinha fazendo um trabalho sobre identidades; estudávamos os povos migrantes e também a população do bairro. Apareceu, então, a pergunta por trás do nome da escola.” Cadu relata que a partir desse momento uma grande contradição ficou em evidência. Isso porque o infante dom Henrique é uma das primeiras figuras históricas que notadamente organizam o tráfico negreiro. Em 1444 ele recebe os primeiros sequestrados da Costa Africana, depois de ter fundado as bases da Escola de Sagres. Segundo Cadu, “o infante dom Henrique contrata mercenários para sequestrar 272 pessoas e ele, pessoalmente, recebe essas pessoas no porto de Lagos, na Nigéria, separando as famílias”. 

Todas essas informações foram documentadas por cronistas da época da navegação portuguesa e estão disponíveis na Biblioteca da Universidade de Oxford. De acordo com Cadu, algumas bibliotecas brasileiras possuem fac-símiles desses documentos que provam a relação do infante dom Henrique com o tráfico negreiro. “Como uma escola cheia de alunos imigrantes poderia homenagear uma figura ligada ao começo da escravização? Submetemos ao conselho escolar o pedido de mudança de nome”, conta o coordenador.

Carolina Maria de Jesus, a Bitita, em 1960 (Imagem: Arquivo Nacional)

Entre os nomes sugeridos pela comunidade escolar estavam o da escritora Carolina Maria de Jesus, o da ativista Patrícia Galvão, a Pagu, e também o de uma ex-funcionária muito querida por todos. A partir dos votos dos alunos, dos pais, dos professores e funcionários, venceu o nome de Carolina Maria de Jesus. 

Para entrar formalmente com o pedido na prefeitura de São Paulo, a escola apresentou um projeto de lei. Ele tramitou na Câmara Municipal em 2017 e demorou para ser aprovado definitivamente, pois houve vetos e diversos questionamentos no caminho. “Nesse meio-tempo decidimos pelo apelido da escritora, Bitita, já que o seu nome estava sendo usado em outro equipamento público.

Carolina Maria de Jesus estudou somente até o 2º ano do primário, e entendemos que estamos realocando a escritora no ambiente escolar.” A partir da mudança do nome, a Emef ganhou novo fôlego. A comunidade que fica nas redondezas da escola é remanescente da comunidade do Canindé dos anos 1950, local onde Carolina Maria de Jesus viveu. Ainda há muitas famílias dessa comunidade vivendo ao lado da escola. 

Fluxo migratório intenso
Historicamente, os bairros do Pari e do Canindé sempre receberam muitos imigrantes. A década de 1990 marca o auge da chegada da comunidade boliviana e no início dos anos 2000 começaram a chegar outros povos andinos, como peruanos, colombianos e povos amazônicos. “Hoje temos 580 alunos no ensino fundamental e 37,5% são imigrantes. Fazemos esse cálculo incluindo também os filhos de imigrantes; não é porque a criança nasceu no Brasil que está tudo resolvido”, explica Cadu.

A estratégia de inclusão da Emef Espaço de Bitita está presente em muitos aspectos, que vão da sinalização interna em diversos idiomas ao reconhecimento de que a ancestralidade é muito importante na construção da identidade da criança e do jovem. Foto: Divulgação Emef Espaço de Bitita

Além disso, há diversos estudos no campo da pedagogia e da psicologia da educação que abordam a importância dos traços fenotípicos. Ou seja, uma criança que nasceu no Brasil e é filha de imigrantes andinos se parece com os indígenas dos Andes; muitas vezes ela é reconhecida como tal. A ancestralidade tem peso e é muito importante na construção da identidade da criança e do jovem. Os estudos do professor do Instituto de Psicologia da USP Lineu Norio Kohatsu apontam algumas das complexidades da inclusão dos filhos de imigrantes nas escolas públicas brasileiras. 

Vale ressaltar que cada comunidade tem sua história de imigração. Os angolanos, por exemplo, vêm atrás de acesso aos serviços de educação e saúde. “Estamos falando do SUS e da educação pública”, pondera Cadu. Existem regras para acolher um novo aluno imigrante ou refugiado, e a primeira delas define que ele precisa estar com seu grupo etário. Isso porque as crianças aprendem mais rápido com seus colegas. “Traduzimos alguns materiais para eles entenderem contextos de aprendizagem, e é preciso ter paciência. Os estudantes árabes aprendem o português mais rápido, pois os idiomas são muito diferentes. Já os estudantes hispanofalantes costumam carregar traços da sua língua materna vida afora.” A Emef Espaço de Bitita também oferece aulas de português para os pais dos alunos e outros adultos imigrantes e refugiados. Os encontros ocorrem à noite e são ministrados por voluntários, organizados pela gestora de educação Sulima Pogrebinschi. O curso tem alta procura e seu foco é o ensino do português para falantes de diversos idiomas. Cadu conta que “tem gente saindo pelo ladrão. Ontem estavam aqui mais de 60 pessoas, em duas salas”. 

A Emef Espaço de Bitita é referência no acolhimento e inclusão de alunos imigrantes e refugiados. As rodas de conversa com os estudantes e as práticas pedagógicas adotadas pela escola — como as placas de sinalização em diversos idiomas — servem como farol para outras instituições. Além disso, projetos desenvolvidos pelos próprios alunos e alunas já foram premiados, como a iniciativa Si, yo te entiendo!, criada por alunas brasileiras descendentes de bolivianos. Elas começaram a dar aulas de espanhol para os colegas brasileiros, para que eles pudessem acolher e conversar com os imigrantes bolivianos. O projeto foi premiado pelo Instituto Alana, por meio da iniciativa Criativos da Escola, em 2017. 

Freando a evasão escolar
A luta contra a evasão escolar é o carro-chefe da escola desde a pandemia. “Fechamos 2021 (ano em que a escola foi reaberta) com 210 alunos fora da escola. Esse número abarcava estudantes que não fizeram nenhuma atividade nem apareceram no quarto bimestre. Terminamos 2022 com 41 estudantes evadidos. Neste momento, temos cerca de 30 estudantes evadidos”, explica Cadu. As razões para a evasão na Emef Espaço de Bitita são variadas. A escola está cercada por Centros Temporários de Acolhimentos (CTAs) da prefeitura; são esses espaços que recebem os imigrantes e refugiados. Na visão de Cadu, esses centros temporários recebem muitas famílias e têm uma regra excessivamente dura: se houver conflito, tem que deixar o CTA. “Só que não dá para esperar cordialidade o tempo todo de quem foi muito violentado”, pondera o coordenador. Frequentemente, Cadu discute com os colegas da assistência social, defendendo o afrouxamento da regra. “Isso precisa ser repensado, pois as famílias são enviadas para outros bairros, às vezes outros estados, e a criança não para em escola alguma. A vida escolar fica comprometida, a criança não se vincula a uma rede. E eu não dou baixa na matrícula até saber onde esse aluno está.” 

Além do diálogo com os CTAs do entorno, a Emef Espaço de Bitita criou o regime de tutorias, prática que se mostrou eficiente. “Dividimos a escola em regimes de tutoria. Cada professor tem 16 estudantes, com exceção dos professores do 1º ao 5º ano.” Cada professor se reúne com sua turma por ao menos uma hora-aula por semana para perguntar: ‘Como estão os seus estudos? Como está sua frequência? Como podemos ajudar você?’.” Às vezes os tutores chegam a dedicar três horas por semana à tutoria.

Cadu explica que é na tutoria que aparecem os casos de abuso sexual, violência doméstica e evasão escolar. O tutor ou a tutora, então, passa os dados para a direção escolar. “A partir dessas informações começamos a ligar para as famílias e, quando não conseguimos falar pelo telefone, visitamos as casas dos estudantes.” A tutora bate na porta da casa e pergunta, então, por que ele não está frequentando a escola. Foi esse acompanhamento que fez com que os números de evasão escolar caíssem drasticamente na Emef Espaço de Bitita.  

São inúmeros os desafios que os profissionais enfrentam nas visitas domiciliares. Às vezes eles encontram alunos que maltratam seu próprio corpo e não querem sair do quarto. Entretanto, Cadu ressalta que a diminuição do número de alunos evadidos e o reconhecimento que a escola vem recebendo por seu trabalho de inclusão elevam a autoestima da equipe e dão forças para o futuro.

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