

Por Wallace Cardozo, Rede Galápagos, Salvador (BA)
As pessoas adultas costumam falar que ser criança é muito bom. Às vezes, chegam a dizer que voltariam à infância, se possível fosse. Responsabilidades, preocupações e boletos fazem com que a vida adulta seja menos divertida. Mas existe algo que resiste ao tempo, uma percepção que faz com que crianças e adultos concordem: é muito bom ouvir uma boa história.
Pais e professores geralmente são as primeiras pessoas a introduzir as crianças no universo dos livros, mediando a leitura, lendo para e com os pequenos. A literatura infantil é importante para desenvolver a imaginação e a criatividade, além de fortalecer vínculos afetivos entre mediador e ouvinte. Em São Bentinho, pequeno município do interior da Paraíba, o chamado à leitura está produzindo impactos perceptíveis na educação das crianças.
“Aqui, nós nos preocupamos muito com a educação. Orgulhosamente, estamos dentro dos parâmetros estabelecidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)”, afirma o pedagogo Damião Trigueiro, que nasceu e sempre morou em São Bentinho. Recém-emancipado, o município tem aproximadamente 5 mil habitantes e está localizado a cerca de 360 quilômetros de João Pessoa. “Ficamos no alto sertão da Paraíba, aqui é ‘interiorzão’ mesmo.”
Cinco instituições de ensino estão em funcionamento em São Bentinho. Damião atua como coordenador pedagógico no Espaço Educacional Infantil Saturnina Maria de Andrade. Ele conta que, assim que chegou à instituição, percebeu a escassez de contato com a literatura por parte das crianças de zero a cinco anos matriculadas e resolveu propor uma intervenção. “Quando procuramos por campanhas de incentivo à leitura, encontramos o programa Leia com uma criança logo nos primeiros resultados.”
Desde 2010, o programa incentiva a leitura do adulto para e com a criança como uma oportunidade de fortalecimento dos vínculos e da participação ativa na educação desde a primeira infância. Mais do que contar uma história, a proposta é que o mediador de leitura tenha a escuta ativa e convide a criança a participar e se engajar no processo. Neste ano , um milhão de crianças de 659 municípios brasileiros receberam livros por meio do programa, sendo que, de acordo com indicadores, 74% deles estão entre os mais vulneráveis do país.
“Recebemos 245 kits no final de 2019, quando fizemos a inscrição do espaço pela primeira vez. Incluímos os livros no material escolar das crianças matriculadas no início do ano letivo de 2020.” Nas primeiras aulas daquele ano, já era possível notar familiaridade e interesse das crianças em relação aos livros. Entretanto, a pandemia e as medidas de prevenção à Covid chegaram algumas semanas depois da volta às aulas e atrapalharam o desenvolvimento do trabalho.
De acordo com Damião, o acesso à internet é deficitário em São Bentinho. A prefeitura disponibiliza cinco pontos de distribuição de sinal gratuito em locais estratégicos, como a praça municipal. Esses locais foram utilizados pelos pais e responsáveis que não têm internet em casa para acessar as atividades remotas.

“Na zona rural, a dificuldade é ainda maior porque só temos uma operadora de celular na região”, lamenta o pedagogo. Nesse contexto, cerca de 65% do alunado conseguiu participar das atividades à distância.
A equipe pedagógica do EEI Saturnina Maria de Andrade desenvolveu uma estratégia para dar continuidade às atividades literárias. Apresentações de slides e reuniões remotas semanais tiveram o objetivo de orientar os pais para que realizassem momentos de leitura com as crianças. A adesão foi praticamente integral, mesmo entre aqueles responsáveis que não são alfabetizados. “Pedimos aos que ainda não sabem ler que apenas folheiem os livros e deixem a imaginação trabalhar com as imagens e as cores.”
Literatura como aliada
Com o sucesso da campanha, estabeleceu-se a meta de que as crianças lessem um livro por semana. Os pais eram incentivados a enviar aos professores fotos e vídeos dos momentos de leitura. Logo, os dois livros dos kits do Leia com uma criança foram lidos e relidos por todos e, entusiasmados, os estudantes passaram a ler também os outros livros infantis que a instituição tem em seu acervo. “O programa veio para somar de diferentes formas. As orientações de como trabalhar as leituras com as crianças foram importantes para que utilizássemos também outras obras literárias.”
O isolamento acabou aproximando as famílias da escola. “No nosso contexto, geralmente os pais atuam como donos de casa ou com a agricultura, em regimes de trabalho muito extensos. Chegam ao fim do dia cansados, o que compromete o acompanhamento e a participação nas reuniões”, avalia Damião, explicando que algumas crianças eram matriculadas apenas como requisito para a inscrição da família em algum benefício social. Agora, pais e mães entendem como podem contribuir e se sentem parte importante na educação de seus filhos.
Em São Bentinho, o retorno ao ensino presencial teve início em setembro de 2021. “Notei que as crianças desenvolveram certa timidez por causa da falta de interação. Mas elas queriam voltar às aulas presenciais.” A literatura foi uma aliada para lidar com os desafios da transição. Engajados, os educadores se empenharam na utilização da mediação de leitura como recurso educativo durante as aulas. Algumas professoras se caracterizaram como personagens dos livros. “As crianças ficaram encantadas e isso ajudou a contornar a retração delas.”


Início da formação do leitor
“O número de crianças matriculadas no EEI Saturnina Maria de Andrade cresceu de 130 para 241 após a campanha de incentivo à leitura, um aumento de 85%”, relata o coordenador pedagógico da escola. “O espaço físico já não comporta mais a quantidade de alunos. Precisamos de um anexo.” A Secretaria de Educação do município repetiu a campanha em outras instituições de ensino, e cerca de 700 famílias já foram impactadas pelo Leia com uma criança nas zonas urbana e rural de São Bentinho.
Luziene Cavalcante, uma das educadoras, sugeriu a utilização da “mala viajante”. Trata-se de uma mochila repleta de livros que vai para a casa de uma criança a cada sexta-feira e retorna na segunda. Juntos, pais e estudantes são estimulados a explorar as histórias durante o final de semana. “Na maioria das vezes, a mala volta com pelo menos um livro faltando. Não pedimos de volta, porque isso significa que a criança gostou da obra”, explica Damião.
O pedagogo pretende continuar garantindo a participação de São Bentinho nas próximas edições do Leia com uma criança. “É o início da formação de um adulto leitor, que terá uma melhor percepção da vida porque quem lê aprende.”
Saiba mais
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