Dez perguntas para
Mauren Porciúncula
Professora doutora da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), onde atua com ensino na graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão em educação estatística. Idealizadora e responsável pelo Leme (Programa de Letramento Multimídia Estatístico)


Por Maggi Krause, Rede Galápagos, São Paulo
Uma embarcação em que os tripulantes sejam os alunos; os comandantes, seus professores e orientadores; a escola, um píer ou um cais de porto. E aonde ela leva? A uma expedição que envolve todos em uma jornada em busca de novos conhecimentos. As referências náuticas adotadas para descrever o que acontece nas oficinas do Leme (Programa de Letramento Multimídia Estatístico) têm motivo.
Desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande (Furg), cidade que sedia um dos portos mais importantes do país, o projeto se iniciou em 2012, em parceria com o Centro de Convívio de Meninos do Mar (CCMar). Nos dez anos de existência, muito mudou, mas o poder de transformação do letramento estatístico continua o mesmo. “A educação estatística pode dar direção para a vida das pessoas, assim como um leme direciona uma embarcação”, diz Mauren Porciúncula, professora pesquisadora da área de educação estatística, idealizadora e responsável pelo Leme. Sem compreender a enxurrada de dados a que estão expostos, os jovens não conseguem transitar com autonomia na sociedade da informação. E o letramento estatístico serve como uma bússola na sociedade multimídia contemporânea.
Contemplado no edital Anos finais do ensino fundamental: adolescências, qualidade e equidade na escola pública, da Fundação Carlos Chagas e do Itaú Social, o projeto teve sua implementação avaliada em escolas da rede pública municipal de Rio Grande (RS). A pesquisa “Letramento Multimídia Estatístico: Uma interação entre a pesquisa acadêmica e a realidade escolar dos anos finais do ensino fundamental” foi apenas parte do que Mauren e sua equipe de pesquisadores conduziram entre 2019 e 2022 com os recursos do edital. Os colégios participantes presenciaram o desenvolvimento do PAE (Projeto de Aprendizagem Estatística), com planejamentos interdisciplinares e lúdicos, reunindo professores de diferentes áreas de conhecimento e incentivando a participação de estudantes. Ao mesmo tempo, o Grupo Colaborativo de Formação de Professores em Educação Estatística – MoSaiCo Edu e o Apoio Tecnológico para uma Educação Lúdica e Interativa de Estatística – Atelie, ambos sob responsabilidade da professora doutora em educação estatística, geraram novos conhecimentos entre graduandos, pós-graduandos e professores.
Atravessadas pela pandemia, as ações do Leme tiveram que singrar para outros rumos, não sem enfrentar algumas turbulências, que também levaram a novos aprendizados. “Chamou a atenção que, embora os resultados com os alunos fossem fantásticos, nem todos os professores estavam dispostos a sair de sua zona de conforto, o que fez com que apenas duas (de seis) escolas permanecessem no projeto”, conta Mauren, que faz uma defesa do protagonismo juvenil como motivador para manter os adolescentes interessados na escola. Uma verdadeira âncora contra a evasão.
NNotícias da Educação — Quais são os maiores desafios para o aprendizado de estatística nas escolas públicas?
MMauren Porciúncula — O primeiro desafio é o reconhecimento da importância da estatística na sociedade. Não entender que qualquer cidadão deveria compreender esse tipo de dado era um limitador, mas a pandemia quebrou essa barreira. Todos os dias apareciam na mídia a média móvel de casos de Covid-19 e de mortes, as comparações entre países. Ficou evidente a importância de entender dados para a tomada de decisão.
O segundo desafio é o da inserção curricular. Ele também começa a ser vencido por causa da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que incluiu estatística em todos os níveis de ensino, da educação infantil ao ensino médio. Na legislação educacional aparece 200 vezes a palavra gráfico… e eles figuram em geografia, ciências biológicas e até língua portuguesa, pois a estatística abarca todas as áreas do conhecimento.
Ainda considerando a reforma curricular, os itinerários formativos do ensino médio e os projetos de vida na escola impulsionaram a estatística, pois ela é um elemento integrador entre áreas e permite um trabalho que pode ser protagonizado pelos alunos. Em resumo, nos últimos anos, a temática da estatística ganhou um reconhecimento gigantesco dentro da escola: passou de patinho feio para a solução de problemas.
O que é o PAE
O Projeto de Aprendizagem Estatística é uma estratégia pedagógica capaz de promover a transformação social, por meio de práticas pedagógicas lúdicas, interdisciplinares e que priorizam o protagonismo dos discentes. Dessa forma, pode repercutir em uma educação que proporcione engajamento e autonomia estudantil e, por isso, mitigar os desafios dos anos finais do ensino fundamental.
Fonte: texto adaptado do relatório de pesquisa
NPor que entra multimídia na sigla Leme?
MO apelo tecnológico vem desde o início, em 2012, quando eu era recém-formada doutora na área de informática na educação. A palavra multimídia representa os aspectos tecnológicos sendo ampliados e variados ao longo do programa. Por exemplo, conduzimos o trabalho com ajuda de lousa digital, organizamos estatísticas no computador, usamos tablets para entrevistar, para cada momento são usadas diferentes tecnologias. O próprio Leme virou um produto e um conjunto de processos, com avanço do conhecimento científico. A palavra multimídia representa todo esse universo.
NEm uma das suas declarações, você disse que descobriram que formavam professores, além de fazer o trabalho social de letramento estatístico. Quais são os maiores benefícios do projeto Leme nesse sentido?
MO trabalho social de letramento estatístico nunca existiu sem formação de professores, mas essa relação vem aparecendo mais há três anos, com a criação do Grupo Colaborativo de Formação de Professores em Educação Estatística (MoSaiCo Edu). Inicialmente, eram graduandos formados que atuavam como professores do Leme. Depois a equipe ganhou pós-graduandos, mestrandos e doutorados, contribuindo com dissertações e teses para investigar vários aspectos do letramento estatístico na escola. O projeto tem papel de formação continuada, tanto de quem já é formado na área como do professor, que é promovido a pesquisador em sala de aula. Escolhemos a palavra mosaico para representar um conjunto de peças diferentes para uma união de sujeitos diferentes. Os professores foram convidados a participar de reuniões semanalmente, junto com graduandos que implementavam o Leme nas escolas. Houve duas etapas: primeiro o Leme nas escolas e depois com as escolas, com projetos desenvolvidos pelos professores em conjunto com graduandos e pós-graduandos da Furg, além de pesquisadores registrando o corpus de pesquisa, gravando e transcrevendo as discussões.
NQuais foram os maiores obstáculos para a implementação do Leme dentro das escolas?
MNa metodologia principal do Leme, o PAE (Projeto de Aprendizagem Estatística), os estudantes têm que escolher as temáticas a serem pesquisadas. É fácil perceber quanto a postura do aluno muda quando escolhe o que quer pesquisar. Mesmo assim, para os professores foi um dilema entender essa condição como indispensável para o protagonismo. Pensávamos que seria aceita com naturalidade, mas foi preciso um esforço de convencimento, quase imposição… Perdemos professores ao longo do projeto, uns por quererem protagonizar e outros por insistirem em escolher temáticas. Quem ficou até o final reconhece que foi importante passar por esse dilema.
NEntão qual seria o principal papel do professor nesse tipo de projeto?
MSão vários. Ele deve permitir que os alunos construam o conhecimento a partir de seus próprios interesses; articular esses interesses com os conteúdos curriculares; promover a interdisciplinaridade. A principal bandeira é deixar o estudante ser protagonista, não dar aula, e sim ir orientando e apresentando os conceitos… dessa forma o aprendizado não é sofrido e acontece enquanto o aluno se envolve em pesquisas sobre assuntos que ele mesmo escolhe.
NQuais foram os principais resultados do projeto-piloto com as escolas municipais participantes?
MÉ muito evidente a mudança no processo educacional, pois o estudo investigativo e colaborativo no PAE é o principal, e o professor se firma como o orientador. Ele se contagia e fica impactado, pois percebe que a nova forma de trabalhar faz com que o estudante indisciplinado vire disciplinado, com que o tímido participe. Mas, embora os resultados com os alunos fossem fantásticos, nem todos os professores estavam dispostos a sair da sua zona de conforto, e essa resistência acabou fazendo com que o projeto caísse de seis para duas escolas. No entanto, percebemos que, quando o Leme é implantado com a escola (isto é, contando com o envolvimento entusiasmado dos professores), ele fica na escola. De todo modo, sendo ministrado por graduandos ou pelos professores da escola, os benefícios do PAE para o estudante são os mesmos: o ensino é interdisciplinar e a aprendizagem é lúdica, motivando o estudante a ficar na sala de aula.
NDe que forma o edital dos anos finais da Fundação Carlos Chagas e do Itaú Social impactou no desenvolvimento do Leme?
MFoi um marco na história do nosso grupo de pesquisas (Grupo InterNacional Interdisciplinar de Pesquisa em Educação Estatística – Giipee, registrado no CNPq e liderado por Mauren), nos fortaleceu para ir além do prometido no projeto. Nós nos dividimos em linhas de pesquisa: Letramento Estatístico, Desenvolvimento Cognitivo, Interdisciplinaridade, Ludicidade e Conhecimento Docente. O grupo se organizou em comissões — de pesquisa, criativa e de organização — e fez registros de tudo o que aconteceu, gerando um corpus de pesquisa. Todo esse movimento nos colocou em outro patamar de cientificidade. E deu visibilidade às práticas do nosso grupo de pesquisa, tanto que outros querem implantá-las.
NPode nos contar mais sobre algumas pesquisas desenvolvidas no período?
MTodas podem ser aproveitadas para orientar a formação de professores em escolas públicas. Uma delas é sobre os aspectos lúdicos presentes na promoção do letramento estatístico, com base em observação e entrevistas com professores e alunos. Outra se aprofundou em saber como são construídos os conhecimentos dos professores em grupos colaborativos. É inédita e constrói uma nova teoria sobre quais são os conhecimentos docentes necessários para ensinar estatística. Outro pesquisador buscou compreender como a educação estatística promove a interdisciplinaridade e como forma um indivíduo que não vai viver em caixinhas, provando que a escola não precisa mais ser compartimentalizada.
“Nosso papel se cumpre quando o conhecimento produzido dentro da universidade vai para a escola transformar a educação, como a gente tanto quer.”
NQuais foram os principais produtos das pesquisas?
MO principal é a maturidade tecnológica do processo todo, o produto tecnológico, social e educacional Leme e o MoSaiCo, que ficam a serviço da sociedade. Houve um amadurecimento a tal ponto que podemos replicar as formações sobre o PAE em qualquer lugar do mundo e à distância. Já fizemos formações na Nova Zelândia, em Portugal, na Colômbia e em Moçambique. Como produtos palpáveis temos relatórios, um livro sobre o Leme com linhas de pesquisa, histórico do projeto-piloto, dois artigos de professores das escolas e um capítulo com recomendações. Além disso, uma sala Leme implantada em uma das escolas, com condições para uma boa realização dos projetos de aprendizagem estatística.
NQuais foram as principais recomendações da pesquisa?
MSe formos resumir, são três as recomendações principais:
1. Colocar o estudante em posição de protagonista, garantindo que seu contexto de interesse esteja presente.
2. Exercitar a interdisciplinaridade dentro da escola, buscando discussões relevantes e úteis, que façam sentido para os estudantes.
3. Promover um ensino de forma lúdica, que gere prazer, alegria e satisfação para que o estudante não perca o encantamento e queira aprender sempre mais.
Dentro da escola básica, é importante notar que a educação estatística promove a formação cidadã e científica, fazendo com que o estudante não seja apenas consumidor do saber, mas também produtor de estatísticas, investigações, reportagens e pesquisas.
Saiba mais
- Projeto alia letramento estatístico ao trabalho pedagógico interdisciplinar em escolas do município de Rio Grande (RS)
- Site do Leme
- Anos finais do ensino fundamental: adolescências, qualidade e equidade na escola pública
- Sumário executivo da pesquisa Letramento Multimídia Estatístico: Uma interação entre a pesquisa acadêmica e a realidade escolar dos anos finais do ensino fundamental