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Dez perguntas para

“Histórias cotidianas também dão livro”

Bruna Lubambo ilustrou livro infantil sobre o passinho, movimento artístico urbano que a artista já admirava


Dez perguntas para
Bruna Lubambo
Arte-educadora e ilustradora de livros infantis, entre eles De passinho em passinho, obra selecionada pelo programa Leia com uma criança

Por Wallace Cardozo, Rede Galápagos, Salvador

O sotaque entrega já nas primeiras frases: Bruna Lubambo é mineira, do interior. No município de Timóteo, ela mediava rodas de leitura com jovens. Faz o mesmo em Belo Horizonte, desde que foi morar na capital do estado, em 2007. E foi assim que uma estudante de comunicação foi se afastando da trajetória mais usual dos profissionais dessa área para se tornar arte-educadora e artista visual.

Ela ilustrou o livro De passinho em passinho, um dos selecionados pelo programa Leia com uma criança. Milhões de exemplares da obra foram distribuídos gratuitamente, pelo Itaú Social, para escolas, por meio das secretarias municipais de educação e organizações da sociedade civil, com foco em locais de maior vulnerabilidade, de acordo com os indicadores priorizados pelo edital na prospecção de territórios para atuação. O programa disponibilizou ainda versões acessíveis, audiovisuais e em braile, das obras selecionadas. 

Casada com um músico, Bruna sempre buscou se cercar de arte e de manifestações culturais. Foi numa sala repleta de instrumentos musicais que ela conversou com Notícias da Educação sobre literatura, sua relação com a criação visual e aspectos do seu processo criativo. Gosta de artesanato e de xilogravura, mas também curte ouvir música e costumava frequentar batalhas de rap e de dança urbana. “Fico feliz em ver as crianças lendo o livro e tentando reproduzir os passos de dança. Aquelas que já fazem parte do movimento percebem que a história delas também é interessante”, celebra.

NNotícias da Educação — Como você se aproximou da ilustração e por que resolveu começar a ilustrar?

BBruna Lubambo — Tive uma aproximação com o mundo da criação visual como um todo no curso de comunicação, em que eram ofertadas algumas disciplinas de fotografia e de criação visual. Depois, comecei a fazer muitas optativas das belas-artes, saindo um pouco da grade curricular tradicional, e comecei a gostar da criação visual. Certo dia, me chamaram para mediar o processo de criação visual do jornalzinho informativo do Festivale, um festival de cultura do Vale do Jequitinhonha, como bolsista de extensão. Atuei como educadora com as crianças e jovens que estavam participando do festival e, a partir desse momento, me envolvi ainda mais com processos educativos de criação visual. Comecei a fazer todas as oficinas e cursos livres que apareciam pela cidade e aplicava os aprendizados nas oficinas que eu dava. Em paralelo a isso, eu também trabalhava como mediadora de rodas de leitura em alguns espaços culturais de Belo Horizonte. Quando ia para a casa dos meus pais, em Timóteo, também fazia rodas lá. E assim fui tendo contato com a literatura ilustrada, gostando da linguagem e me interessando também pela criação.

NQual a principal característica da sua ilustração?

BPrimeiro, penso no suporte, no material e na técnica que vou utilizar. Em termos de materialidade, decido para que lado vou a partir do que enxergo no texto. Gosto muito do processo de pesquisar novas técnicas e materiais. Em De passinho em passinho, por se tratar da cultura da dança de rua, entendi que seria legal trazer um pouco do que é a arte urbana e trabalhei com estêncil e lata de spray. Achei que isso conversaria com os jovens que viessem a ter contato com o livro e que já estão no meio da cultura da arte urbana. Um outro exemplo é o livro Seu Tainha. Um dos personagens é um barco pesqueiro, tradicional do litoral brasileiro. Resolvi pintar na madeira, em um tipo muito semelhante ao que é usado para fazer esses barcos. Achei importante ter os veios da madeira, como nos cascos de embarcações. Já em Mundo inseto, desenhei tudo nas folhas das árvores onde os insetos moram. Então, busco trazer para as escolhas de suporte, material e técnica um pouco da narrativa visual. Quero contar a história para além das formas e das cores, também pelas texturas e materiais. São camadas que acrescentam e acho que essa minha busca é marcante. Dá muito trabalho porque parece que sempre tenho que partir do zero, o que é pouco prático. Mas gosto de trabalhar assim. Tenho experimentado muitas coisas diferentes.

“Muito se fala sobre a escrita, mas também acho importante destacar as ideias da narrativa oral e de aprender a escutar. Tudo isso tem a ver com a identificação com uma emoção ou sentimento ao se perceber em outras histórias, para além de si mesmo, pois somos feitos de memória e narrativas.”

NFinalista do prêmio Jabuti, o livro Dentro de casa foi o primeiro que você escreveu e ilustrou. O que dizer desse processo?

BFiz esse livro despretensiosamente. Estava na pandemia, no auge do isolamento, sem muito contato com ninguém, todo mundo angustiado com as indefinições… Eu estava muito sozinha, com meu filho bem pequeno. Acho que fiz o livro um pouco como uma forma de dizer a mim mesma: “Bruna, o seu filho está bem e feliz. Ele está criando um mundo aqui dentro de casa, da maneira que é possível, que também é muito bonita”. O livro conta a história de uma casa que, de repente, começou a crescer, e cresceu tanto que a criança narradora-personagem não conseguia atravessá-la num só dia. Ela foi experienciando essa casa de uma maneira diferente, era uma nova lógica de tamanho e proporção. E assim a história se desenvolve. Não é um livro feliz. Ele não romantiza essa situação de estar dentro de casa. É um livro solitário, as ilustrações não têm ninguém além do menino. Muitas cenas estão vazias, apenas com os móveis da casa, e são até meio sombrias. Mas ao mesmo tempo ele tem um toque esperançoso, que eu acho que escrevi para mim mesma. Estava bem aflita na época. O processo de criação visual passou por aquilo que falei sobre como a materialidade e o suporte podem contar a história. Lembro que quis fazer com os poucos materiais que tinha em casa, já que estava num momento de restrição. Usei os gizes que ainda existiam, os que meu filho estava usando para brincar, papel de embalagem… Fui usando o que tinha porque essa restrição nas possibilidades diria um pouco da restrição do momento que o mundo estava vivendo. Muitas mães me relataram que se identificaram com esses sentimentos do livro. Disponibilizei em PDF para download gratuito, e ficou assim por uns seis meses, até que uma editora me convidou para publicar. Foi legal porque teve uma repercussão positiva para o momento em que minha carreira se encontrava. Apareceram boas oportunidades a partir do Dentro de casa

NQuem você considera suas principais referências?

BGosto muito do trabalho da Marilda Castanha, que é uma pessoa que me inspirou a entrar nesse mundo da ilustração. Quando eu estava começando, mandei um longo e-mail para ela pedindo opinião sobre o que eu estava fazendo e achei que ela não fosse responder. Pois respondeu com um e-mail ainda maior, superatencioso. Ela me deu dicas e mostrou alguns caminhos, falou para eu não deixar de mandar meu portfólio para editoras grandes e para considerar também pequenas editoras independentes. Tenho como inspiração e referência alguns mestres e mestras do artesanato brasileiro. São artistas da cultura popular. Admiro alguns ceramistas aqui de Minas Gerais e de Pernambuco, como Ulisses Pereira e Noemisa, que têm um trabalho muito bonito. Gosto também do pessoal das xilogravuras, destaco J. Borges e Samico. Acompanho alguns ilustradores que também escrevem e ilustram, como Roger Melo e Marilda. Lembro que, quando mudei para Belo Horizonte, estava muito interessada nos grafites nas ruas. Ficava observando os traços dos narizes e dos olhos e tentava copiá-los quando chegava em casa, ou mesmo durante a aula.

NQuando criança, você tinha acesso a livros?

BLembro um pouco de ler os livros da biblioteca da escola, mas não lia muito em casa. Lembro também que passavam na rua pessoas que vendiam uns livrinhos, em umas caixas de papel kraft. Tinha contos tradicionais, como A pequena vendedora de fósforos e Chapeuzinho Vermelho. Tinha também contos folclóricos nacionais, como as histórias do Boitatá, do Saci e da mula sem cabeça. Falando agora, lembrei que tinha essas coleções lá em casa. Ah, tinha também um livro em quadrinhos, da Eva Furnari, que eu gostava muito. Sempre lia as tirinhas de jornal. Quando o livro de língua portuguesa vinha com tirinhas, eu lia todas elas antes mesmo de chegar àquele capítulo. 

Tinta em spray e estêncil foram os materiais escolhidos por Bruna para ilustrar o livro De passinho em passinho: “Entendi que seria legal trazer um pouco do que é a arte urbana”. Foto: Arquivo pessoal

NComo você acha que o acesso à literatura desde a idade escolar pode impactar a vida das crianças?

BAlém da literatura, vejo a relevância da contação de histórias, da mediação de leitura. Ela tem o importante papel de mostrar possibilidades de interpretação e proporcionar o encantamento pela linguagem do simbólico. É um jogo entre a palavra e a construção de significados que gera interesse. Muito se fala sobre a escrita, mas também acho importante destacar as ideias da narrativa oral e de aprender a escutar. Tudo isso tem a ver com a identificação com uma emoção ou sentimento ao se perceber em outras histórias, para além de si mesmo, pois somos feitos de memória e narrativas. Com o meu filho, às vezes faço questão de contar histórias sem ler, do jeito que lembro e interpreto. Não podemos esquecer que a escrita vem da oralidade, e não o contrário. A música popular brasileira também é literatura. Temos um cancioneiro popular muito diverso e bonito, e a nossa literatura bebe muito dessas canções.

NComo chegou o convite para participar do livro De passinho em passinho?

BEu não conhecia o Otávio, mas sim o seu trabalho, principalmente o livro Da minha janela. De repente, ele me mandou uma mensagem dizendo que queria contar comigo para um novo projeto e que entrariam em contato comigo em breve. Agradeci o convite e aguardei, até que o pessoal da editora me chamou. Foi muito legal trabalhar com ele; nós nos entendemos rápido. Esse foi o meu primeiro trabalho com uma editora maior, então também foi de muito aprendizado entender como funciona trabalhar com uma grande equipe, com editor, assistente, diretora de arte, todo mundo envolvido no fazer de um livro. Finalmente, nos conhecemos pessoalmente no Museu da Língua Portuguesa [no evento de  lançamento da campanha Leia para uma Criança do Itaú Social em 2022]. Já estamos com projetos de fazer outras coisas juntos. Ele disse que conheceu o meu trabalho por meio do livro Dentro de casa, que tem uma proposta totalmente diferente daquela do De passinho em passinho. Até perguntei se me chamou porque tinha visto algumas postagens de quando eu frequentava disputas de passinho em BH, ainda antes de me tornar ilustradora. Ele disse que nem viu as postagens. Foi uma boa coincidência.

NComo se deu o seu processo de pesquisa para a criação visual em De passinho em passinho?

BEncontrei on-line um ensaio com muitas fotos da Batalha do Passinho do Cantagalo, no Rio de Janeiro. Também acessei alguns registros videográficos e de fotos da Disputa Nervosa, que acontece aqui em BH. Estava vendo as fotos quando lembrei de uma final de uma edição em que eu estava lá assistindo, entre Jonathan Dancy e Vitinho, em 2016.
Foi muito bonito ver os dois dançando porque eram muito amigos. Alta intensidade e muita gente vibrando junto durante a disputa. No final, se abraçaram e um deles chegou a deitar no chão. Pensei que isso daria imagens muito legais, já imaginando a lógica da página dupla do livro ilustrado. Bastaria mexer um pouco nos enquadramentos e nas proporções… Felizmente, a batalha foi filmada na íntegra e está disponível no YouTube. Assisti devagar, várias vezes, encontrando momentos importantes e fazendo prints. Fiz a história toda como se fosse essa coreografia, que vai intercalando os dançarinos de página em página, até que, em algum momento do livro, começa a contagem regressiva até o abraço, como na batalha de verdade. Achei que seria difícil para mim porque as minhas ilustrações não costumam ser realistas. Eu queria desenhar de maneira que as pessoas que conhecem os passos conseguissem identificá-los ao ver as ilustrações. Então, trouxe esse realismo no sentido dos movimentos de braços e pernas, do posicionamento de corpo, para que fizesse menção aos passos e movimentos comuns da dança de rua. 

Bruna revelou que ela e Otávio Júnior já trabalham juntos em outros projetos após o sucesso da obra: “Nós nos entendemos rápido”. Foto: Arquivo pessoal

NDepois da pesquisa, qual o passo a passo até a finalização da obra?

BA primeira coisa que fiz, antes mesmo de começar a pesquisa, foi voltar a escutar funk. Com o contexto da pandemia e de ter um filho pequeno, eu tinha ficado bem isolada e desatualizada. Também vi muitos vídeos de disputa. Tem muita coisa legal na internet, disputas do Brasil inteiro. Foi assim que tive aquela ideia de buscar o vídeo da final da Disputa Nervosa. Quando decidi pela lógica de intercalar os passos entre os personagens ao longo do livro, a ideia era de que eles estariam dançando pela cidade, numa ocupação protagonizada por esses corpos. O texto me ajudou a ir definindo isso. Quando Otávio fala da escola, eu coloco a menina dançando na quadra da escola, pulando como se estivesse atravessando a quadra inteira num único salto. A editora de arte sugeriu que diferentes cidades do Brasil estivessem nas ilustrações. Quando aparece o frevo, fiz a ambientação geográfica em referência à Rua da Aurora, no Recife. Incluí cidades com fortes movimentos da dança de rua e do funk, representando algumas das vertentes do passinho, como o Passinho do Romano (São Paulo), Passinho Foda (Rio de Janeiro) e o Passinho do Malado (Belo Horizonte), além do Passinho dos Maloka (Recife). Recortei alguns personagens das fotografias e dos prints que fiz. Joguei no editor de imagens e comecei a brincar com eles. Espichei as pernas, movimentei os braços, tentando visualizar como a disposição dos corpos funcionaria, já pensando no tamanho e no formato do livro. A minha ideia era que tomassem boa parte da página, como se quisessem alcançar e ocupar todos os espaços, ou pular através da margem, ou mesmo passar de uma página para outra. Para isso acontecer, as proporções não ficariam exatas. Às vezes, tive que esticar muito um braço, como se fosse um braço de mola ou uma perna de borracha que se estica. Quando achei que a composição estava legal, fiz um rascunho com cores para testar como cada uma delas entraria. Aprovei dessa forma com o Otávio e com a equipe da editora. Finalizei com estêncil e spray. Já tinha feito muito estêncil, mas sempre em processos coletivos e educativos, como educadora. Essa foi a primeira vez que fiz sozinha. Cada cor é um estêncil a ser recortado. É trabalhoso e tem borrões que evidenciam que o trabalho foi feito manualmente. Até optei por não tirar as manchinhas na hora de levar para o computador. 

NNo final do livro, não há indicação de qual dos personagens venceu a batalha. Isso foi intencional?

BSim. A ideia era não ficar claro e que cada leitor pudesse escolher o dançarino de que gostou mais. Isso também foi inspirado na final da Disputa Nervosa. No dia, finalizados os dois rounds da batalha, o público ficou pedindo um terceiro round, como acontece nas batalhas de rap quando a plateia entende que houve um empate. Mas não existe isso na disputa de dança porque os competidores já estão muito cansados.

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