

Por Paula Salas, Rede Galápagos, São Paulo
Qual é o propósito da educação? Tirar uma boa nota no Enem é suficiente para dizer que o processo de ensino e aprendizagem foi bem-sucedido? Cumprir uma lista de conteúdos é o objetivo final desse trabalho? A educação integral propõe romper com essa lógica.
A perspectiva defende a centralidade no aluno e vai além dos conteúdos que tradicionalmente fazem parte do currículo — por exemplo, frações, Revolução Francesa, cartografia, gêneros textuais etc. A escola assume um papel de garantir experiências de aprendizagem que contribuam para o desenvolvimento integral dos alunos. “As habilidades cognitivas não podem se sobrepor a autoconhecimento, cooperação, empatia, criatividade e protagonismo”, afirma Conceição Aparecida, vice-diretora da EM Anne Frank, em Belo Horizonte (MG).
“Educação integral é para aprender a pensar, a conversar, a se colocar na relação com os demais. Implica também o encontro da escola com seu entorno, com sua comunidade, com temas da vida cotidiana de quem está na escola”, explica Jaqueline Moll, professora titular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e referência em educação integral. “É desenhada com oportunidades e propostas educativas que visam desenvolver cada sujeito em suas múltiplas dimensões: social, cultural, intelectual, física e emocional”, acrescenta Julia Pinheiro Andrade, fundadora da Ativa Educação e consultora pedagógica do programa de novas pedagogias para aprendizagem profunda do Itaú Social.
A perspectiva não é novidade no mundo da educação. Sua base está na pedagogia humanista ou progressista, que surge ainda no século 19. “Dialoga com grandes pensadores da educação. Está na obra de Maria Montessori, de Célestin Freinet, Paul Robin. No Brasil, na de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Maria Nilde Mascellani”, conta Jaqueline.
Desmistificando a educação integral
Para começar, devemos retificar: educação integral e tempo integral não são sinônimos. “Não se trata de ampliar o tempo para que a escola siga fazendo o mesmo treinamento nas áreas do conhecimento”, explica Jaqueline.
A transição para essa perspectiva vai além de aumentar o período em que os alunos estão na escola. “Fazer formação humana integral não é fazer outra modalidade de ensino, é mudar a natureza do modo de funcionamento das escolas”, afirma a professora da UFRGS.
Implica repensar currículos e práticas pedagógicas e formação inicial e continuada dos professores. “Essas habilidades devem estar previstas no currículo para que se trace um plano de trabalho que garanta planejamento, avaliação, monitoramento e replanejamento para que o desenvolvimento integral do estudante esteja em foco”, diz Conceição.
Também envolve políticas de valorização docente, ações de aproximação e participação das famílias e ampliação do tempo e espaço educacional, entre outros aspectos.
Em nível de gestão pública é importante fortalecer a cooperação entre diferentes setores. “Para avançar nas aprendizagens na perspectiva do desenvolvimento pleno, a educação deve dialogar com a assistência social, saúde, cultura, esporte e meio ambiente. As políticas devem conversar entre si pensando no território e na potencialização de experiências formativas que estejam na escola e além dela”, observa Jaqueline.
A educação integral também não significa que as aprendizagens mais “tradicionais” sejam deixadas de lado. Mas, sim, como fazer esse trabalho de outra forma, em paralelo a outros aspectos importantes para o desenvolvimento das crianças e adolescentes. Esse equilíbrio permitirá que, ao final da trajetória escolar, o jovem saia plenamente preparado para ser um cidadão crítico e participativo. Inclusive, esse maior diálogo com a realidade e as necessidades dos estudantes pode ser uma poderosa ferramenta para os professores. “As competências socioemocionais contribuem muito para que o estudante se engaje e aprenda mais e melhor”, destaca a vice-diretora.
Papel da gestão escolar
A perspectiva de garantia de direitos básicos e luta por pautas sociais já está presente na EM Anne Frank desde sua fundação, na década de 1980. Na instituição as rodas de conversa são uma estratégia muito utilizada para, de forma estruturada, discutir assuntos importantes para a comunidade e desenvolver competências fundamentais para o desenvolvimento pleno dos alunos. “É um primeiro passo para o desenvolvimento do autoconhecimento e da empatia”, ressalta Conceição.
Para ela, o papel da gestão é organizar esses momentos na rotina, além dos conselhos de classes participativos, dos encontros com as famílias e de apoiar o trabalho dos professores — Conceição destaca especialmente o apoio com a construção de instrumentos avaliativos que contemplem a perspectiva do desenvolvimento integral. “Os gestores têm que abraçar essa visão pedagógica para permitir que ela aconteça e dar condições de trabalho para a coordenação e os professores fazerem isso”, destaca Julia.
Como se desdobra para a prática docente
“Não é mais ensinar com foco em transmitir um conteúdo. O foco do professor passa a ser gerar oportunidades de aprendizagem para os estudantes, habilidades e conhecimentos vividos de forma autêntica”, afirma Julia. “É uma mudança bem grande. O professor tem que fortalecer os processos de estudo e reflexão sobre a própria prática docente para tomar decisões que promovam esse desenvolvimento integral”, complementa.
Para exemplificar como a perspectiva pode aparecer na prática docente, Julia relata a experiência da Emef José Inocêncio Monteiro, em Tremembé (SP). A instituição está localizada em uma região periférica, próxima de uma rodovia, sendo comuns problemas com acidentes na região. “A escola aproveitou essa situação real do território, que impacta a vida dos estudantes, para gerar toda uma situação investigativa que fez os estudantes olharem para a região”, relata a consultora. Um primeiro passo foi realizar um diagnóstico sobre o que os estudantes sabiam a respeito do tema.
Em seguida, os professores trabalharam aspectos da matemática e geografia para fazer medições e elaborar mapas do território. Pesquisaram e entrevistaram pessoas da comunidade para saber da história da rodovia e escreveram suas descobertas nas aulas de língua portuguesa e história. “Ao final produziram uma documentação para divulgar para a comunidade e reivindicar mais segurança”, conta Julia. “Eles olharam para tudo que tinham construído e fizeram um comparativo com o que sabiam no início e perceberam sua própria aprendizagem”, acrescenta a consultora.
Essa experiência é um exemplo de como construir um projeto integrando diferentes componentes de forma significativa. E pode ser adaptada para atender demandas diversas. “É criar situações mais autênticas em qualquer objeto do conhecimento a partir do que é observável no território ou de situações reais do mundo”, conclui.
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