Dez perguntas para
Isabel Cristina Alves da Silva Frade
Doutora em educação, é professora titular do programa de pós-graduação e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), ambos da FaE-UFMG e presidente emérita da Associação Brasileira de Alfabetização


Por Maggi Krause, Rede Galápagos, São Paulo
Em estudos sobre metodologias de ensino nos séculos passados ou em artigos sobre os desafios da atualidade, que incluem a exposição das crianças à cultura digital, a alfabetização é muito presente na vida acadêmica e profissional de Isabel Cristina Alves da Silva Frade. Seja no início da carreira como professora ou na posição de diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da FaE-UFMG, cargo que ocupou entre 2012 e 2014, o processo de aquisição da língua escrita a motiva e fascina.
Na figura da professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG, Magda Soares (1932-2023), uma das maiores referências em alfabetização e letramento no Brasil, ela encontrou não só uma orientadora de olhar atento, que ensinava a indagar a realidade, mas uma amiga sempre pronta a lidar com seus dilemas pessoais e profissionais. “Foram inúmeras as vezes em que você me recebeu para pensarmos sobre os rumos das políticas e da educação, para refletirmos sobre as desigualdades, para discutirmos novas pesquisas e horizontes”, escreveu Isabel em sua homenagem no livro Cartas para Magda, lançado por ocasião dos 90 anos da educadora, falecida no dia 1º de janeiro deste ano.
Além da experiência como alfabetizadora, Isabel se dedica à pesquisa em duas frentes: investiga a história da alfabetização e da cultura escrita e, na contemporaneidade, a relação e o impacto da cultura escrita digital sobre o processo de alfabetização. A pesquisadora vivenciou as últimas décadas de políticas públicas na área, observou avanços e retrocessos e teve oportunidade de acompanhar Magda Soares no trabalho de formação de toda uma geração de pesquisadores no Ceale e também de vê-la voltar à escola pública como consultora do projeto de formação Alfaletrar, dedicado à educação infantil e aos anos iniciais do ensino fundamental de Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte.
Editora do jornal Letra A, direcionado a alfabetizadores, Isabel trabalha orientando pesquisas na linha de educação e linguagem no Ceale e com formação de professores, em especial nas redes que adquiriram o Alfaletrar, livro em que Magda descreveu dez anos do projeto em Lagoa Santa. “Nos encontros, as discussões em torno de alfabetizar letrando são expandidas ou contextualizadas conforme os problemas ou soluções de cada município”, explica a pesquisadora. Na entrevista a seguir, ela aborda as repercussões da cultura digital para a alfabetização, o impacto de políticas públicas, as discussões sobre métodos para alfabetizar, a negação do governo Bolsonaro do movimento que fez a área avançar nas últimas quatro décadas e as contribuições e atitudes da mestra e amiga Magda Soares.
NNotícias da Educação — Como a alfabetização se relaciona com processos sociais mais amplos e até com as atividades econômicas de um município?
IIsabel Cristina Alves da Silva Frade — Quando as pessoas analisam a história da alfabetização e da cultura escrita baseadas na escola e na pedagogia, deixam de ver uma série de fenômenos que explicam por que uma determinada população foi ou não alfabetizada, quais grupos, etnias e regiões tiveram índices de alfabetização mais baixos ou mais altos. É possível dialogar com outras variáveis, nem sempre pedagógicas. Na década de 1990, Harvey Graff mostrou que antes da escola havia grandes motivações para a sociedade se alfabetizar, como a burocracia estatal, a religião (para ler a Bíblia) e as guerras (trocas de cartas). Há elementos que também impulsionam a necessidade de ler e escrever, como a existência de editoras, imprensa, livrarias, bibliotecas, tipografias e até mesmo a ferrovia e o correio. Investigamos 178 municípios nos primeiros anos da república em Minas Gerais, montamos um mapa com a escolarização e percebemos que, além da urbanização, a existência de ensino secundário e superior e a circulação da palavra impressa elevavam o número de pessoas alfabetizadas. A relação entre alfabetização, sociedade e cultura escrita tem que ser colocada de forma mais transparente para que possamos compreender melhor o fenômeno e ter cuidado para não cair em soluções simples, que dependam apenas de promessas metodológicas. Vale frisar que os índices de alfabetização sempre estiveram ligados à questão da desigualdade.
“O rompimento de políticas públicas foi um retrocesso, pois se reduziu a complexidade da alfabetização a apenas uma alternativa (a dimensão fônica), negando avanços e discussões das últimas três ou quatro décadas.”
NQuais impactos as políticas públicas da última década tiveram sobre a alfabetização?
IA universalização da educação infantil como direito da infância certamente traz contribuições para o modo como as crianças vivem a cultura escrita na escola. Mesmo sem ser específica de alfabetização, ela impacta os anos iniciais. Outro exemplo são as políticas do livro que permitiram acesso à literatura de qualidade para alfabetizandos, como as do Programa Nacional da Biblioteca na Escola (PNBE), o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e a política de paradidáticos no Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), com salas de leitura e biblioteca escolar. A própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresenta em língua portuguesa a concepção de que devemos partir de textos em seu uso social, ampliando a alfabetização, além de estabelecer metas para oralidade, produção de textos, leitura e conhecimentos linguísticos. Em termos de políticas federais que incidem diretamente na alfabetização, tivemos um ciclo contínuo com o Pró-Letramento, iniciado em 2007, fundamental para estabelecer metas em relação a capacidades a adquirir, o Pnaic (2012/2017), que explicitou os direitos de aprendizagem, e a Avaliação Nacional de Alfabetização. O conjunto dessas políticas ampliou as oportunidades de crianças e professores, e seu rompimento foi executado sem a análise de seus benefícios pelo último governo. Houve retrocesso, pois se reduziu a complexidade da alfabetização a apenas uma alternativa (a dimensão fônica), negando avanços e discussões das últimas três ou quatro décadas. Houve suspensão de programas como o Pnaic, mudança na política do livro didático, a anulação de terminologias, como a questão do letramento, e ainda o desrespeito pela Magda Soares e pelo Paulo Freire, nossas grandes referências. Diante da tragédia das políticas reducionistas, criamos alternativas para trabalhar com os professores nas redes municipais. O período foi difícil e dá vontade de esquecê-lo, mas não podemos repetir esses erros no futuro.
NPoderia explicar o conceito de letramento, conforme definido por Magda Soares, e por que ele iniciou um processo de alteração de paradigmas no ensino da leitura e da escrita?
IMagda fazia uma reflexão sobre o perigo de uma escolarização que deixa de fora a relação com a sociedade. Quando escreveu seus ensaios sobre letramento, suas reflexões mostram que o ensino se faz a partir dos textos e seu uso social. No caso da aplicação do conceito ao tempo da alfabetização, a questão é que apenas a imersão nos usos não alfabetiza, pois a alfabetização exige uma reflexão sobre o objeto que se aprende: o sistema alfabético da escrita, a ortografia e outras convenções. Se o letramento é resultado de uma imersão, a reflexão sobre as propriedades do sistema de escrita se faz com distanciamento. Os alfabetizadores hoje são mediadores, lendo textos para a turma compreender e escrevendo histórias ditadas pelas crianças, ou seja, não limitam as experiências ao domínio do sistema alfabético, mas trabalham tudo junto — isso é o que denominamos de alfabetizar letrando.
No glossário, a definição de letramento
Surge um termo que se acrescenta e se associa à aprendizagem do sistema alfabético — à alfabetização — para nomear esta outra faceta da aprendizagem da língua escrita, o LETRAMENTO: o desenvolvimento das habilidades que possibilitam ler e escrever de forma adequada e eficiente nas diversas situações pessoais, sociais e escolares em que precisamos ou queremos ler ou escrever diferentes gêneros e tipos de textos, em diferentes suportes, para diferentes objetivos, em interação com diferentes interlocutores, para diferentes funções.
Fonte: verbete do Ceale, por Magda Soares
NA questão dos métodos envolve embates polêmicos na área, entre alfabetização tendo como modelo uma atuação mais construtivista piagetiana de Emilia Ferreiro (que não se trata de método) e outras formas de ensino para a aquisição da língua escrita. Como Magda Soares precisou lidar com a questão ao longo da sua carreira?
INa educação vivemos processos de curvatura da vara, com polarizações. No caso da alfabetização, ora nosso discurso foi para o lado do ensino direto, ora para outro, do protagonismo do aprendiz, na perspectiva construtivista. O que Magda nos mostrou, sobretudo em seu texto “Letramento e alfabetização: as muitas facetas”, é que determinados paradigmas produziram a “desinvenção” das metodologias, como o construtivismo, ou a “desinvenção” da alfabetização, em sua especificidade, como o conceito de letramento que ela ajudou a divulgar no final da década de 1990. Ela fez até a autocrítica do próprio conceito que ajudou a desenvolver. Dizia que uma faceta não pode obscurecer a outra. Em seu livro Alfabetização: a questão dos métodos, ela juntou paradigmas que parecem inconciliáveis para alguns grupos, porque conseguiu relacionar objeto de conhecimento, ensino e aprendizagem, mostrando que, ao saberem como a criança pensa e como o sistema de escrita, como objeto, funciona, os professores podem criar metodologias mais abrangentes. Não existe um caminho único; o docente precisa dialogar com esses paradigmas e produzir ações, criando alternativas pedagógicas conforme as situações, o contexto dos alunos e o das escolas, sempre singulares.
“Os métodos mudaram, as teorias mudaram e a organização da sala de aula continua a mesma. Mesmo quando sabemos que isso não funciona e não é coerente, ainda é o que praticamos no século 21 e condiciona a forma como alfabetizamos.”
NVocê defende que refletir sobre os métodos, metodologias e formas de intervenção na alfabetização permite aprender algumas lições. Quais são as mais importantes?
IDesde 1993, quando investiguei a resistência ao construtivismo na alfabetização, aprendi diferentes lições sobre como atuamos de forma radical ao defender paradigmas que nem sempre trazem muitas respostas para a prática. A discussão metodológica, que foi bem obscurecida nas décadas de 1980 e 90, criou uma lacuna sobre a didática da alfabetização. Na sua história, os métodos de alfabetização têm princípios linguísticos ou psicológicos, muitos deles importantes até hoje. O que sabemos é que um único método dificilmente deu conta do processo complexo de alfabetizar. Sabemos também que os métodos de alfabetização dialogam com os modos de organização da escola e, nesse sentido, herdamos, desde 1840, a maneira simultânea de “ensinar a todos, no mesmo lugar e ao mesmo tempo”. Os métodos mudaram, as teorias mudaram e a organização da sala de aula continua a mesma. Mesmo quando sabemos que isso não funciona e não é coerente, ainda é o que praticamos no século 21 e condiciona a forma como alfabetizamos. Quando conhecemos os métodos e metodologias de alfabetização de outros tempos, podemos ver rupturas, mas também continuidades pedagógicas, o que mostra a complexidade da alfabetização. Percebo que os professores ficam muito aliviados quando podem falar desse tema e entendem o limite da adoção de uma metodologia única.
NQuais são os desafios para a alfabetização diante das transformações na comunicação contemporânea?
IVários investigadores da cultura escrita, como Roger Chartier, dizem que com a emergência das tecnologias digitais tivemos uma revolução nos suportes, nos gêneros textuais e na materialidade dos textos. Nesses ambientes, a linguagem é expandida com recursos semióticos como imagens, sons, movimentos, cores, e a cultura escrita que se produz ganha novos contornos, graças aos gêneros textuais próprios do digital. Há várias repercussões para a alfabetização, como o diálogo do sistema alfabético com outros sistemas, pois a cultura digital apresenta recursos que não dependem apenas da escrita ou da linguagem verbal. A forma como os alfabetizandos, como sujeitos culturais, passam a ver os sistemas semióticos e seus usos é outro desafio. Para além de games que já existem, só o tempo e as novas pesquisas dirão como, por exemplo, o sistema de transcrição de voz e a sonorização dos textos podem contribuir como recursos para a alfabetização. Hoje uma criança é capaz de ditar o nome de um filme para o Google, copiar e colar para fazer uma busca na Netflix. Mas sabemos que dificilmente o processo de aprendizagem se fará sem a interação com pares e sem a intervenção de um mediador. As crianças estão chegando com uma percepção aguçada do uso desses recursos, então o desafio para os professores é aprender como elas pensam para dialogar e avançar na alfabetização.

NComo é o trabalho do Ceale e qual sua importância como centro de referência na área de alfabetização?
IO Ceale foi criado em 1990, sob o comando de Magda Soares, com pelo menos três perspectivas: pesquisa, ação educacional e documentação. Participamos de políticas do livro didático e literário, da rede nacional de formação continuada formada em 2006, quando havia poucos grupos em universidades dedicados à alfabetização. Na época, o Ceale era o centro mais consolidado; aí vários outros foram criando suas próprias pernas e estratégias. Isso partiu da iniciativa da Rede Nacional de Formação Continuada, que se consolidou no programa Pró-Letramento, avançando nas discussões sobre os usos sociais da escrita e as especificidades da alfabetização. Nosso compromisso continua sendo abrir frentes e atender a demandas de municípios, estados e federação para a formação continuada e outras políticas. No período do último governo, conservador, trabalhamos com diferentes municípios, o que permitiu ver a verticalização de ações e seu impacto em sala de aula. Mas a esperança para 2023 é participar de políticas nacionais de formação continuada que atinjam mais professores e escolas.
NVocê acompanhou a volta de Magda para o chão da escola, no projeto Alfaletrar? Em que medida ela conseguiu aproximar o mundo acadêmico da escola pública, que são dois universos que se distinguem, mas se relacionam?
IMagda se preocupou com uma aproximação com a escola pública, com seus alunos e professores desde sua atuação na pós-graduação, quando nos recebeu como professores alfabetizadores, em suas obras didáticas e quando fundou o Ceale, com a ideia de ação educacional. Em Lagoa Santa, a experiência direta com professores da rede alterou bastante seu pensamento sobre como intervir e ela se colocou na posição de aprendiz de um novo lugar, com a humildade que sempre teve e a predisposição de aprender com os professores, e não apenas prescrever o que deveriam fazer. Acho que ela trouxe toda a bagagem acadêmica, mas aprendeu que é com os professores, diretamente, que se constroem um projeto de alfabetização e uma didática de alfabetização. O conhecimento teórico não é o mais importante, e ela entendeu isso com humildade quando atuou no projeto Alfaletrar.
NNa live em comemoração aos 90 anos de Magda Soares, você disse que as contribuições dela para a educação brasileira e para a alfabetização se deram nos escritos, nas ações e no exemplo, elevando a alfabetização ao estatuto de campo de pesquisa. Qual considera a maior contribuição da professora e pesquisadora?
IQuando Magda escreveu As muitas facetas da alfabetização, em 1985, trouxe a complexidade do fenômeno e possibilidades de pesquisa e atuação. Aquele artigo foi seminal, por isso o estatuto da alfabetização foi além da ação pedagógica de alfabetizar, incidindo na compreensão pedagógica, cultural e social do fenômeno. As teorias que divulgou e os trabalhos que orientou mostram como esse olhar multifacetado era também uma disposição de enxergar a realidade da alfabetização a partir de vários pontos de vista. No entanto, esse olhar multifacetado que construiu não a colocou no lugar de quem apenas reflete. Ela tomou posições em ações das quais participou, não se eximindo de se expor na produção de livros didáticos, na participação em políticas e na intervenção pedagógica. Ao se colocar em vários lugares, descobriu os limites da aplicação de teorias ou levou teorias que ajudaram a construir práticas, mas com a participação de professores nas decisões.
NEm seus muitos anos de convivência com Magda, qual foi a característica que considerou mais marcante?
IMagda sempre nos desafiou a achar nossos próprios caminhos. Sua escuta era impressionante e não se valia da sua posição para nos convencer de seus argumentos. Acho que o que ela mais me ensinou foram a humildade e o prazer do conhecimento. Ela tinha uma humildade acadêmica ao saber que dificilmente podemos chegar à totalidade de um conhecimento da área. É esse tipo de humildade que nos faz avançar. Ela sempre nos dizia que o tempo das perguntas é mais importante que o tempo das respostas. Ao mantermos essa postura, certamente iremos respeitar e ampliar o legado que ela nos deixou.
N — Qual é a grande contribuição do Alfaletrar, livro que faz um apanhado prático dos processos de alfabetização e letramento, com base no projeto de Lagoa Santa?
I — Magda registrou o percurso de dez anos de reflexão, de criação de estratégias, de estabelecimento de metas e progressões, envolvendo a educação infantil e os anos iniciais. Seu livro é uma inspiração para redes, professores e para quem se preocupa com a didática da alfabetização e com um projeto para a alfabetização. No entanto, sabemos que, mesmo inspirada em sua obra, cada rede tem seu percurso, e esse livro foi o registro de um percurso específico, com condições especiais de ter Magda como membro de um núcleo, com apoios específicos de um município. Não pode ser um modelo, mas uma inspiração. Temos trabalhado com municípios que adquiriram o livro Alfaletrar, mas, como há questões do contexto de cada localidade, nenhum até hoje quis apenas reproduzir o que está relatado na publicação. Acho que Magda teve oportunidade de ver isso acontecer nos dois últimos anos e, certamente, era isso que esperava da apropriação de sua obra.