Carlos Abicalil
Educador, deputado federal (PT/MT) entre 2003 e 2011, mestre em educação e em gestão de políticas públicas


Por Wallace Cardozo, Salvador (BA)
No Brasil, os casos de acúmulo de vínculos trabalhistas por parte de professores são mais comuns do que deveriam. Dentre as muitas justificativas apresentadas pelos docentes para atuar em mais de uma unidade escolar, a mais comum é o argumento financeiro. Mesmo com a conquista de uma legislação que define o piso salarial da classe (Lei nº 11.738/2008), os professores ainda entendem que a remuneração é insuficiente.
O problema é que dobrar ou mesmo triplicar a jornada de trabalho é uma prática que cobra o seu preço. Falta de tempo para se dedicar a outras atividades, queda na qualidade do processo de ensino-aprendizagem e até mesmo questões de saúde estão entre as consequências de uma carga excessiva de horas trabalhadas e de estudantes por turma.
Um relatório produzido pela organização da sociedade civil Dados para um Debate Democrático na Educação (D³e), com apoio do Itaú Social, traz conclusões sobre questões relacionadas ao volume de trabalho dos professores dos anos finais do ensino fundamental. A pesquisa foi realizada a partir de estudos de caso em redes estaduais e municipais brasileiras.Uma das recomendações do documento é a adoção da jornada integral como padrão para os docentes. Estudiosos da educação defendem a medida por entender que os professores tendem a realizar um trabalho mais efetivo quando se dedicam a apenas uma instituição de ensino. A tese também é defendida por Carlos Abicalil, professor, ex-deputado federal e mestre em educação e em gestão de políticas públicas. Nesta entrevista o educador fala, entre outros temas, sobre a carga de trabalho dos professores, assunto do webinário “Volume de trabalho dos professores dos anos finais do ensino fundamental – estudos de caso em redes estaduais e municipais brasileiras”, realizado no dia 14 de junho, realizado pelo Itaú Social e parceiros.
NNotícias da Educação — Quais conquistas da classe dos professores você destaca durante o seu período de atuação?
CCarlos Abicalil — Em 1994, o Brasil realizou a conferência relativa ao compromisso internacional pela universalização do direito ao acesso gratuito à educação básica. Naquele momento, tivemos pela primeira vez o reconhecimento da responsabilidade federal pela educação básica. Ainda antes da sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), esse debate resultou num importante compromisso para o país.
Outra relevante conquista foi o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério). É importante dizer que foi a primeira grande expressão do comprometimento da União com o financiamento do ensino fundamental. A partir dali, outras discussões importantes surgiram, como a da hora-atividade e a do piso salarial profissional nacional, peça importantíssima para a universalização do acesso ao ensino básico.
“A sobrecarga traz problemas aos profissionais da educação, como já identificávamos em 2000, em pesquisas de saúde do trabalho, como a síndrome de burnout.”
NSua carreira de professor incluiu momentos de acúmulo de trabalho e sobrecarga?
CSim. O meu primeiro emprego era de 44 horas semanais, em regime temporário. O contrato precisava ser revalidado a cada ano. Ele era interrompido no meio de dezembro e retomado em fevereiro. Em razão dessa interrupção, recebíamos o primeiro salário com quatro ou cinco meses de atraso entre o início do exercício profissional e a remuneração. Eram 44 horas da minha jornada dedicadas à sala de aula, em que cheguei a ter mais de 900 alunos de forma simultânea, somando os três turnos. Sou professor de história, filosofia e sociologia, mas nesse momento cobri áreas para as quais não fui formado, dando também aulas de matemática e geografia.
NDe que maneiras esse volume excessivo de trabalho influencia no processo de ensino-aprendizagem?
CA sobrecarga, evidentemente, traz problemas aos profissionais da educação, como já identificávamos em 2000 em pesquisas de saúde do trabalho, como a síndrome de burnout. Lamentavelmente, os tribunais não têm respeitado a disposição da lei ao permitir que professores acumulem outras funções. Continuo militando pela jornada de tempo integral e pela ruptura dessa cultura de acumulação de cargos. Mesmo nas redes em que há melhoria das condições salariais, vários dos meus colegas de profissão ainda os acumulam como uma alternativa para o complemento de renda, em detrimento de suas próprias condições de trabalho e de saúde.
NConsiderando a questão da renda, as conquistas relacionadas à remuneração serão suficientes para a diminuição dos casos de sobrecarga?
CSuficientes, não. Como disse, há uma cultura de acumulação de empregos. De 2017 para cá, houve a introdução da figura do “notório saber”, que acaba por desprofissionalizar o exercício do magistério. Essa figura já esteve presente em outros períodos, normalmente naqueles autoritários, servindo para outras finalidades que não as educacionais.
A conquista do piso salarial profissional, o direito de carreira e a exigência de concurso público ainda não são universalizados. Isso explica a existência de contratos precários. A remuneração é um aspecto muito importante, assim como a organização do currículo e dos horários. É fundamental a dedicação em tempo integral numa única unidade escolar, o que implica discutirmos aquilo que já está previsto nos artigos 12 e 13 da LDB, a autonomia escolar. Inclusive para garantir que todos os componentes curriculares estejam contemplados na formação, mas ao mesmo tempo observar as condições de trabalho de modo a reduzir os volumes que não correspondam estritamente ao tempo previsto no contrato do docente. Quando há autonomia, o salto qualitativo fica evidenciado no desempenho escolar, na participação da comunidade nos projetos político-pedagógicos e no exercício da autonomia responsável e democrática das habilidades escolares.
“No acordo nacional de 1994, foi indicada uma média, considerada ótima, de 24 a 35 alunos por sala. De lá para cá, muitas redes melhoraram de maneira substantiva, mas em várias outras esse assunto ainda está fora de pauta.”
NExiste alguma norma em relação à quantidade de horas trabalhadas ou de estudantes por sala?
CExiste na LDB uma orientação, que não está quantificada. A definição cabe a cada sistema de ensino, nos âmbitos de estados e municípios, em razão de fatores específicos, como mobilidade, localização da escola ou demanda potencial por determinada oferta, como no caso de quilombolas, indígenas e educação de jovens e adultos. Por isso, existe tanta disparidade. Numa rede grande como a do estado de São Paulo, há escolas estaduais com mais de 40 alunos numa sala de aula, enquanto a escola vizinha limitou esse número em 30 ou 32, para o mesmo componente curricular. No acordo nacional de 1994, foi indicada uma média, considerada ótima, de 24 a 35 alunos por sala. De lá para cá, muitas redes melhoraram de maneira substantiva, mas em várias outras esse assunto ainda está fora de pauta.
NProfessores talvez sejam uma das classes profissionais que mais precisam lidar com a questão de levar trabalho para casa. O direito à hora-atividade é uma importante conquista, mas dá para dizer que é respeitado, na prática?
CNão, por várias razões. Entre elas estão o número de alunos e a falta de espaço físico nas escolas para que isso seja exercido. Hoje em dia, o dever de casa é visto como responsabilidade tanto do aluno como do professor, o que se tornou mais complicado devido ao aumento do uso de tecnologias. Os professores precisam preencher formulários que consomem um tempo considerável, pois as escolas não possuem conexão de banda larga nem equipamentos individuais adequados. Muitas vezes, os professores usam seus próprios dispositivos, como celulares, tablets ou computadores pessoais, o que acaba tomando mais tempo do que aquele destinado à preparação para o trabalho pedagógico. Além disso, precisam organizar as aulas, selecionar e criar materiais pedagógicos, além de lidar com problemas cotidianos, como o bullying.
A evolução do conhecimento também demanda constante atualização dos professores, especialmente em disciplinas como a geografia, em que novos conceitos surgem o tempo todo. No entanto, os recursos e condições necessários para essa atualização nem sempre estão disponíveis. Os professores enfrentam desafios tanto em termos de formação quanto de condições de trabalho adequadas. É importante destacar que muitos profissionais do magistério estão próximos da aposentadoria, o que indica a necessidade de renovação e de atenção a essas questões.
“Os principais agentes de superação da ruptura da atividade presencial foram os profissionais da educação, que se anteciparam aos próprios gestores, conselhos e instrumentos normativos de maneira proativa, para garantir o vínculo de crianças, adolescentes e jovens com as comunidades de ensino e aprendizagem.”
NVocê já testemunhou algum caso em que a sobrecarga afetou a saúde do profissional?
CSim, já presenciei. Inclusive, a afetação à saúde do profissional também implica a afetação à comunidade escolar. Fases como a pré-adolescência e a adolescência, por si sós, já são etapas da vida bastante conflituosas, que exigem dedicação e atenção individualizadas em muitos casos. Não há como um profissional da educação disfarçar uma noite ruim ao se apresentar diante de uma turma à qual ele está exposto durante toda a semana. Esses traços aparecem no nosso comportamento, na linguagem, no físico, na expressão facial…
Em alguns casos, surgem sintomas que depois são diagnosticados como hipertensão, por exemplo, muito comum a partir dos 40 anos. Cantores fazem exercícios vocais todos os dias. Nós falamos durante cinco ou seis horas, em escolas que são intensamente barulhentas, sem nenhum recurso para preservar a voz. Em determinadas ocasiões, somos confidentes de situações familiares que envolvem violências e para as quais não estamos preparados, mas nos sentimos o único espelho daquela criança ou daquele adolescente para a superação da sua situação. Isso acontece todos os dias.
É preciso dar atenção à saúde laboral, assim como à saúde emocional. Por muito tempo se disseminou a tese de que somos, por característica, uma profissão absenteísta, que gosta de faltar e que se utiliza de atestados médicos para não comparecer ao trabalho. É uma simplificação. Felizmente, a integração de políticas públicas tem resultados já demonstrados. Sabendo o que podemos fazer para melhorar, precisamos ser ouvidos pelas autoridades e pela comunidade, no sentido da superação das condições que nos provocam
“De certo modo, a reforma é um processo contínuo na área da educação. Ela é melhor, mais produtiva, mais eficiente e alcança maior universalidade quanto maior for a participação popular e social no seu debate, sem nunca prescindir de seu principal ator, que é o profissional da educação.”
NNesse contexto, como a pandemia afetou os profissionais da educação?
COs principais agentes de superação da ruptura da atividade presencial foram os profissionais da educação, que se anteciparam aos próprios gestores, conselhos e instrumentos normativos de maneira proativa, para garantir o vínculo de crianças, adolescentes e jovens com as comunidades de ensino e aprendizagem. É fundamental dizer que as iniciativas partiram, muitas vezes, dos próprios professores, comprometidos com suas turmas e com as famílias das crianças e adolescentes, buscando alternativas das mais variadas. Não foi apenas um evento de precaução sanitária, mas um conjunto associado de disposições que culminou, inclusive, no empobrecimento de várias famílias. E aí vale muito mais essa identificação do que apenas as relações de trabalho formais. Isso também ocorreu na área de saúde e de assistência social.
O acolhimento significa colocar em pauta o que se passou durante a pandemia. A carga de trabalho durante o isolamento foi maior, e essa intensificação se deu por múltiplas razões. Primeiro, nós tivemos que dispor da nossa própria casa como cenário de sala de aula. Além disso, algumas pessoas não tinham acesso à internet ou não tiveram acesso a uma alimentação adequada. As restrições de financiamento mais graves se deram na nutrição, o que atingiu diretamente famílias de baixa renda que estão com seus filhos e filhas matriculados na rede pública.
Isso dói muito na experiência pedagógica para profissionais de educação vocacionados ao exercício da liberdade, à garantia da cidadania plena, a produzir um futuro melhor. Algumas crianças na fase da alfabetização ficaram dois anos sem ter a presença da professora. Temos que considerar que a mudança do 5º para o 6º ano é impactante. É necessário discutir a ampliação do tempo de permanência da criança no ambiente escolar, para um processo simultâneo de recuperação de conteúdos e da aprendizagem que não foi feita no período adequado em razão do afastamento social, mas também da perspectiva de constituir uma escola de tempo integral. O período de prevenção sanitária foi e é completamente justificado, mas não se pode comprometer o futuro das pessoas que viveram esses anos.
NPessoas com os mais variados posicionamentos políticos costumam concordar que o sistema de educação brasileiro precisa de uma reformulação. O que você pensa a respeito?
CDe certo modo, a reforma é um processo contínuo na área da educação. Ela é melhor, mais produtiva, mais eficiente e alcança maior universalidade quanto maior for a participação popular e social no seu debate, sem nunca prescindir de seu principal ator, que é o profissional da educação. A reforma do ensino médio tem um erro de origem: o abandono do diálogo social na sua composição, razão pela qual todos os diagnósticos, mais à esquerda ou mais à direita, apontam falhas gravíssimas na sua implementação. Algumas delas eu entendo como problema de conceito. A juventude foi pouco consultada.
Acho que não temos que nos assustar com reformas, mas com os métodos e orientações que elas têm. Nos últimos anos, vivemos uma democratização do acesso ao ensino superior jamais vista no Brasil. Triplicamos a presença de jovens, aumentamos massivamente a presença da população negra e de baixa renda nas instituições públicas. Isso é muito incômodo para os setores elitistas. O novo ensino médio e os chamados itinerários formativos não podem ser uma condenação ao não acesso ao ensino superior. É isso o que está em jogo.
Estou falando de 1.200 novos componentes curriculares que foram identificados como sem nenhuma capacidade de avaliação de para que servem. Um aluno fez curso de brigadeiro, o outro de “o que rola por aí”, o outro aprendeu a fazer maquiagem, e isso é considerado suficiente para a autonomia cidadã e produtiva do jovem brasileiro. Atualmente, tiram-se aulas de filosofia, história ou biologia para colocar um componente como esses. Não vamos esquecer que tudo isso coincidiu com as perdas de direitos dos trabalhadores, no mesmo ano de 2017, e que efetivamente não contribui para que concluamos as finalidades da república de promover uma sociedade livre e justa.
NQual a educação que você sonha ver no Brasil?
CUma educação que garanta a autonomia das pessoas, a absoluta capacidade de desenvolver seus aspectos criativos inventivos e sua curiosidade, a participação cidadã com juízo crítico. Isso não é apenas o que penso, mas está escrito na LDB. Desejo, sobretudo, um espaço de tempo e convivência em que possamos ser felizes, experimentar a alegria e respeitar todas as formas de diversidade que fazem parte da nossa realização como pessoas.