

Por Livia Piccolo, Rede Galápagos, São Paulo
Assim como no mundo real, o mundo digital é repleto de possibilidades e de riscos. A internet e as ferramentas tecnológicas podem promover aprendizagens de grande valor e, também, podem oferecer conteúdos falsos como a famigerada ideia de “Terra plana”, além de visões de mundo empobrecedoras e violentas. Diante desses desafios de grande complexidade, o letramento digital é parte importante na formação de crianças e jovens. Como pensar projetos e práticas que contribuam para o bom uso das possibilidades digitais? Como conectar a tecnologia com o cotidiano das crianças e jovens? E, ainda, como promover o foco e a concentração, visto que ambientes digitais estimulam a dispersão com suas infinitas guias, influenciadores digitais e programas?
Julia Dutra Moretti, 35 anos, é professora orientadora de educação digital na Emef Desembargador Artur Whitaker, no bairro Vila Sônia, na cidade de São Paulo. Ela explica que um dos principais documentos do município que orientam a prática docente para o LED (Laboratório de Educação Digital, a antiga Sala de Informática) é o Currículo da Cidade: Ensino Fundamental: Tecnologias para Aprendizagem. Nessa proposta, o trabalho se estrutura em três eixos norteadores: Programação, Letramento digital e TIC (Tecnologias da informação e do conhecimento).
Julia Moretti explica: “O letramento digital é a interação responsável, ética e crítica nos meios tecnológicos, envolvendo as práticas sociais. Compreende as linguagens midiáticas, apropriação tecnológica, cultura digital, consciência crítica, criativa e cidadã e, por fim, investigação e pensamento científico”. Além disso, a proposta também se apoia nos ideais da cultura maker (ou mãos na massa), de metodologias ativas e no protagonismo estudantil.

Todos os alunos têm uma aula por semana de 45 minutos, e a professora faz sempre uma breve apresentação da proposta do dia. “No ciclo autoral, que envolve o 7º, o 8º e o 9º anos, a gente foca no desenvolvimento do TCA (Trabalhos Colaborativos de Autoria); ele é um projeto específico de pequenos agrupamentos.” Moretti ressalta que, nesse momento, a orientação é direcionada para cada grupo. “Falo muito sobre a qualidade da pesquisa na internet, ajudando os estudantes a entender quais sites são ou não confiáveis.”
Compartilhando as reflexões sobre o bairro
Como exemplo positivo de interação entre campos como arte e tecnologia, a professora relembra uma parceria frutífera para realização de TCA (um requisito para a conclusão do ensino fundamental na rede do município de São Paulo), no ano de 2018: o projeto “Era uma Vila”, que abordou a gentrificação no bairro da Vila Sônia. Orientado pelo professor de história, um grupo de alunos do 9º ano decidiu explorar o tema das mudanças econômicas e sociais impulsionadas pela chegada da estação de metrô nos arredores do território escolar.
“Na época, estávamos trabalhando com fotografias temáticas para a plataforma Instagram, com o projeto Olhares Whitaker. Inspirados no uso educacional e criativo dessa plataforma digital e nas discussões acerca da gentrificação do bairro, os estudantes criaram o perfil “Era uma vila”, no qual constam fotos autorais e textos que compõem a pesquisa de TCA que realizaram.” O projeto Olhares Whitaker continua ativo no Instagram, com postagens mais atuais de algumas criações em Pixel Art feitas pelos estudantes da escola.

No primeiro semestre deste ano, devido aos ataques racistas sofridos pelo jogador de futebol Vini Jr., Julia Moretti e a professora de língua portuguesa fizeram uma proposta para os estudantes: a criação de um mural virtual de apoio ao jogador. “Após a grande repercussão do caso, utilizamos a plataforma Padlet e os estudantes foram convidados a elaborar pequenos textos com mensagens de apoio a Vini Jr.”
Inclusão digital
Julia Moretti conta que, a partir da vivência no cotidiano da escola, os alunos relatam as novidades para ela. “Pergunto para eles o que estão assistindo em casa e quais jogos estão consumindo; gosto de saber em quais canais eles aprendem, por exemplo, a jogar determinado jogo.” A professora vai percebendo, dessa maneira, como os estudantes aproveitam as horas fora da escola. “A grande maioria passa muito tempo na tela e nos celulares.”
Essas conversas são sempre uma boa deixa para manter e aprofundar o diálogo sobre inclusão digital, tema que surgiu com força na pandemia, quando as aulas virtuais se tornaram uma realidade. “Inclusão digital não é só promover o acesso e colocar wi-fi em todos os lugares. É claro que precisa de acesso, mas qual a qualidade disso? Dar acesso a quê, exatamente?”, ela questiona. Segundo Moretti, a conscientização nasce da percepção do consumo crítico. “É preciso entender que existem muitos interesses em jogo na internet. Há empresas que produzem conteúdo com objetivos específicos, e, por isso, temos que utilizar a ferramenta com espírito crítico.”
A profissional ressalta que as famílias precisam entender de forma clara e objetiva que é arriscado deixar o celular na mão da criança e do jovem, sem nenhum tipo de orientação ou controle. “Ainda falta uma comunicação clara da sociedade como um todo sobre isso.” Ferramentas de controle e conteúdos adequados são responsabilidade das empresas e do governo também, não só do indivíduo. “Eu brinco com meus alunos e colegas dizendo que o celular é o novo cigarro: talvez a gente descubra daqui a alguns anos que o uso excessivo dele traz muitos danos, e será preciso uma regulamentação e uma comunicação mais clara, como nos maços de cigarro.”

Habilidades socioemocionais
Para manter os estudantes interessados, a dimensão lúdica é considerada essencial para alunos de todas as idades. “Lúdico tem a ver com se permitir brincar e explorar. Por ser um espaço diferente, sinto que os estudantes já vêm para o laboratório com uma certa abertura para a experiência. É muito importante saber ouvi-los; quero saber o que eles têm interesse em pesquisar.” Julia conta que sempre se surpreende com os estudantes, pois cada um traz consigo um universo de curiosidades, interesses e perguntas próprias. Ela define como o maior desafio em sala de aula — seu e de toda a escola — aprender e saber lidar com as habilidades socioemocionais. “Esse é um tema novo tanto para as instituições como para as famílias. Nós, como sociedade, estamos tentando entender como lidar com as habilidades socioemocionais.” Na pandemia o uso da internet e das ferramentas digitais aumentou muito e houve um relaxamento de toda a sociedade em relação ao número de horas. “Virar essa página para criarmos uma nova consciência é algo que ainda está em processo.”
Saiba mais
- Currículo da Cidade: Ensino Fundamental: Tecnologias para Aprendizagem
- Curso Recursos Educacionais Digitais (REDs)
- Guia para mediação de literatura infantil digital
- Estante Digital — Leia com uma Criança
- Mediação de literatura infantil digital — Polo
- Webinário A leitura no mundo digital, no YouTube