Aline Carvalho
Produtora audiovisual, atriz, pedagoga e professora, integra a equipe de comunicação do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes) da Universidade São Paulo (USP), em Ribeirão Preto; codirigiu o documentário Esquecidos — Crise nos anos finais do ensino fundamental


Por Ferdinando Casagrande, Rede Galápagos, São Paulo (SP)
Desde que o Brasil despertou para a necessidade de garantir educação de qualidade para todos, a partir da Constituição de 1988, sucessivos governos fizeram investimentos significativos para universalizar o acesso às escolas e para corrigir distorções. O foco principal esteve principalmente nos ritmos de alfabetização nos anos iniciais do fundamental e na redução dos índices de evasão e abandono no ensino médio. Nada, nesses quase 35 anos, foi apresentado para os anos finais do ensino fundamental, que compreendem do 6º ao 9º ano.
Justamente na fase em que crianças e jovens de 11 a 14 anos atravessam a passagem da infância para a adolescência, a educação brasileira parou no tempo. Sem políticas públicas específicas, esse segmento continua funcionando basicamente com a reorganização imposta pela ditadura civil-militar (1964-1985) na reforma educacional de 1971.
Os problemas enfrentados por essa etapa são o tema do documentário Esquecidos — Crise nos anos finais do ensino fundamental, produzido pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes) da Universidade São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. “Existe, dentro do debate educacional, um consenso de que esse é um segmento para o qual menos se olha”, afirma Aline Carvalho, 31 anos, uma das diretoras do documentário. “O Lepes queria experimentar tentativas diferentes de engajar as pessoas, e escolhemos esse como tema do nosso primeiro documentário por acreditarmos que é preciso trazer mais essa pauta para o debate nacional.”
Produtora audiovisual, atriz e pedagoga formada pela USP Ribeirão, Aline atuou como professora por 12 anos antes de se integrar à equipe de comunicação do Lepes. Nesta entrevista a Notícias da Educação, ela fala sobre os desafios apontados pelo documentário para os anos finais do ensino fundamental.
NNotícias da Educação — Por que o Lepes escolheu os anos finais do ensino fundamental como tema de seu primeiro documentário?
AAline Carvalho — O tema foi proposto, inicialmente, pelo professor Daniel Domingues dos Santos, que, além de fundador, é uma referência aqui no Lepes. Para ele, pouco se olha para os anos finais do ensino fundamental no Brasil. Mas não é só ele que pensa assim. Existe, dentro do debate educacional, tanto na academia como nas fundações e até mesmo nas escolas, um consenso de que esse é o segmento para o qual menos se olha. Hoje, as políticas públicas estão muito concentradas nos anos iniciais do ensino fundamental e no ensino médio. Ninguém está olhando para os anos finais, que também têm suas complexidades e desafios. Então, nós achamos importante trazer essa discussão para a sociedade: será que esse segmento não está sendo negligenciado? Que problemas estamos enfrentando em função dessa negligência?
NQual foi a última vez que essa etapa foi reformada?
APois é, só esse dado já dá a dimensão do problema. A divisão do ensino fundamental que temos hoje aconteceu em 1971, no período da ditadura [civil-militar, que durou de 1964 a 1985]. O MEC simplesmente dividiu o fundamental sem considerar as etapas de desenvolvimento das crianças, sem diálogo algum, sem consultar os gestores, sem consultar as redes. E a partir daí nunca mais tivemos uma discussão ampla sobre esse modelo. A gente foi seguindo, foi tocando o barco, como se estivesse tudo funcionando muito bem. Só que não estava. E hoje temos uma quantidade enorme de problemas para resolver nos anos finais do fundamental.
NQue problemas vocês identificam nessa etapa?
ATodos os depoimentos dos nossos entrevistados — especialistas, gestores, professores e alunos dessa etapa — nos levam à conclusão de que os anos finais do fundamental enfrentam turbulências em diferentes áreas. A começar pelas questões emocionais vividas pelos pré-adolescentes, que são naturais nessa idade, mas que não estão sendo acolhidas pela escola. Isso acontece porque não temos uma visão estrutural dessa etapa, que contemple a formação dos professores para lidar com esse público, que defina melhor as responsabilidades de atendimento de cada esfera de governo dentro do pacto federativo, que imagine uma reorganização curricular mais adequada para gerar aprendizagem significativa e maior engajamento e protagonismo dos jovens.
“Nessa fase dos anos finais do ensino fundamental o desempenho dos alunos despenca. Os índices de evasão e de reprovação são altíssimos. É como se a escola deixasse de ser um lugar motivador.”
NDe que forma as questões emocionais da pré-adolescência influenciam na aprendizagem dos alunos?
AOs reflexos começam já no 6º ano, porque não há uma transição bem estruturada dos anos iniciais para os anos finais do fundamental. Há muitos relatos de professores nesse sentido. Essa transição do 5º para o 6º ano é muito difícil para as crianças, porque elas estão vivendo um caldeirão de emoções em função do crescimento, da chegada da pré-adolescência e, de repente, tudo muda. Mesmo quando o aluno permanece na mesma escola, o que nem sempre acontece por causa das indefinições do pacto federativo, ele não tem mais o professor da turma, ao qual ele estava acostumado. A cada 50 minutos, entra um professor novo na sala e é mais difícil estabelecer vínculos. Às vezes é pior do que isso, pois há escolas em que o aluno é quem tem de mudar de sala a cada aula. Se ele muda de escola, então, isso se agrava porque ele perde também todos os amigos que tinha. É uma grande receita de fracasso. Muitos, que vinham bem nos anos iniciais, acabam perdendo o interesse pela escola.
NExistem evidências de que o aluno perde o interesse pelos estudos?
APara os especialistas entrevistados no documentário, os resultados que temos em avaliações como a Prova Brasil e o Saeb [Sistema de Avaliação da Educação Básica] evidenciam esse desinteresse. Nessa fase, o desempenho dos alunos despenca. Os índices de evasão e de reprovação são altíssimos. É como se a escola deixasse de ser um lugar motivador. A pergunta que os especialistas colocam é: por que o aluno está desistindo nesse segmento? Alguma coisa tem aí.
NE qual é a resposta? Por que o aluno está perdendo o interesse?
AUm dos motivos, sem dúvida, passa pela organização do currículo. A partir do 6º ano, todos os conteúdos são dados por professores especialistas e ocorre a fragmentação do conhecimento. E os professores não têm formação específica para trabalhar com os alunos nessa idade, com as mudanças que eles estão vivendo. O aluno chega ali e muitas vezes se sente meio abandonado. Ele não tem ninguém olhando com mais atenção para ele, justamente no momento em que precisa de muita atenção, porque está tentando entender quem ele é, para onde vai… Um dos alunos que a gente entrevista traz muito bem essa questão do existencialismo. O nome dele é Adryan e ele relata que se sente deslocado, que aquilo que ele aprende não tem nenhuma relação com a realidade dele, não faz sentido… Então é natural que ele vá perdendo o interesse.
“Um caminho que se tem discutido é colocar o aluno no centro da aprendizagem, numa situação em que ele vai ter de solucionar problemas e vai se ver no mesmo momento em que no passado o homem deparou com aquele problema pela primeira vez.”
NComo seria uma transição mais adequada? Um professor tutor no 6º e 7º anos ajudaria nesse sentido?
AEu acho que uma transição mais adequada teria de levar em consideração as especificidades do momento em que o aluno está. Em relação a essa questão dos tutores que você traz, há um estudo feito no Rio de Janeiro em que um professor tutor acompanhava a turma de forma mais próxima com o objetivo de perceber onde era preciso intervir e atuar e fazia a ponte com os professores especialistas. Essa é uma das discussões em pauta, mas não é a única. Qualquer solução teria de ser implementada por meio de muito diálogo e de forma muito bem estruturada. Uma transição mais adequada seria uma transição dialogada, envolvendo gestores, professores dos diferentes níveis… Hoje, muitas vezes, não há diálogo nem mesmo entre os especialistas dos componentes curriculares dos anos finais do fundamental que atuam nas mesmas salas.
Como assistir — ou exibir — o documentário
Há um site especial que hospeda o documentário e funcionar como um repositório, com repercussões, notícias sobre o assunto na mídia e programação de exibições. “Em breve teremos materiais complementares, como a íntegra das entrevistas feitas com cada participante do filme. Também vamos dividir o material em capítulos com tempo menor, como uma série, para facilitar a exibição pelas escolas”, explica a diretora Aline Carvalho. É possível acessar o site para assistir ao documentário, que também está no canal do Lepes no YouTube. Também por meio dos contatos no site as escolas ou redes interessadas podem agendar exibições públicas, com um debate posterior. “Sempre que possível, alguém do Lepes participa desses encontros — presencial ou virtualmente”, conta. “Temos o maior interesse em participar dos eventos para promover o debate de ideias sobre o tema.”
“Temos de olhar como tudo conversa. Aqui no Lepes, na agenda de gestão educacional, nós temos investigado coerência educacional. Como a avaliação conversa com o currículo? Como o currículo conversa com a BNCC? Como esse currículo e essa BNCC conversam com a formação do professor?”
NVocê mencionou a desconexão entre o que é ensinado e a realidade do aluno. Como tornar a aprendizagem mais significativa?
AUm caminho que se tem discutido é colocar o aluno no centro da aprendizagem, numa situação em que ele vai ter de solucionar problemas e vai se ver no mesmo momento em que no passado o homem deparou com aquele problema pela primeira vez. Então a gente tenta fazer o processo de ensino-aprendizagem dentro dessa perspectiva. Isso, porém, dá muito trabalho. Obviamente que, com tempo e experiência, você consegue fazer isso de uma maneira mais rápida, mas para isso eu preciso de insumo. Preciso de tempo, preciso de diálogo, preciso conhecer os alunos, as especificidades de cada turma… Dá trabalho, e essa é a grande questão. Para o professor, o modelo fragmentado de ensino, em que ele só se preocupa com os conteúdos do componente dele, se torna o caminho mais factível, por causa de toda a estrutura imposta. Infelizmente, isso não é o melhor para o aluno.
NSeria necessário repensar o currículo como um todo?
AExato. Da forma como é feito hoje, sem pensar o currículo de ponta a ponta, não tem como promover esse trabalho interdisciplinar, estimulando o protagonismo dos estudantes. Nós precisamos desenhar esse caminho do 1º ao 9º ano, com espaço para reuniões e projetos integrados, relacionando anos iniciais e anos finais do fundamental, com esses dois campos comprometidos entre si. Eu preparo o estudante para você receber, e você sabe quem está recebendo. Conversar sobre currículo, porém, é algo difícil, porque currículo é disputa. Quem escolhe o que vai ser ensinado? Isso é uma questão de poder.
Mais sobre o Lepes
Fundado em 2011 por três professores da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP em Ribeirão Preto (SP) — Daniel Domingues dos Santos, Luiz Domingos Scorzafave e Elaine Pazello —, o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social da USP em Ribeirão Preto se dedica a estudar a educação de ponta a ponta e pauta sua atuação fundamentalmente em cinco agendas: Primeira Infância; Gestão Educacional; Desenvolvimento Integral; Transição Escola-Trabalho; e Violência e Criminalidade. Para saber mais, visite o site do Lepes.
NO que nos leva à questão do pacto federativo, que você também mencionou anteriormente. De que forma a criação do Sistema Nacional de Educação ajudaria a melhorar essa etapa?
AEm alguns debates em que eu estive, há uma discussão de que seria importante que o Sistema Nacional de Educação tenha o papel de determinar quem é responsável, afinal, por essa etapa. Porque atualmente nem isso está definido. Em algumas cidades, os anos finais do fundamental são responsabilidade do estado, em outras quem oferece é o município… Então esse seria um primeiro passo. E, a partir daí, o SNE promoveria um alinhamento entre estados e municípios, permitindo um regime de colaboração. Eu gosto muito da comparação que se faz com o SUS [Sistema Único de Saúde]. O SNE seria o SUS da educação. Um país do tamanho do Brasil precisa de um sistema que olhe de maneira macro para a oferta dessa etapa da educação, contemplando todas as esferas — federal, estadual e municipal —, unificando o sistema. Cada escola continua responsável por criar o seu currículo a partir da realidade em que está inserida, tendo a BNCC [Base Nacional Comum Curricular] como referência, mas dentro de um sistema organizado único, como é o SUS. É um planejamento prevendo toda a organização do ecossistema escolar, em todos os níveis. Temos de olhar como tudo conversa. Aqui no Lepes, na agenda de gestão educacional, nós temos investigado coerência educacional. Como a avaliação conversa com o currículo? Como o currículo conversa com a BNCC? Como esse currículo e essa BNCC conversam com a formação do professor? Como conversa com a gestão docente, com a rede? Não tem como ficar fragmentado, porque não faz sentido.
Perguntas-bônus
Sem dúvida, é preciso repensar as licenciaturas, que, em sua maioria, estão focadas apenas no conteúdo que o professor precisa ensinar. Elas devem se preocupar também com outros dois aspectos: como o professor vai ensinar; e para quem ele vai ensinar. Porque não é a mesma coisa ensinar para uma criança do 5º ou do 9º ano. Os cursos sérios de pedagogia têm esse olhar para as etapas de desenvolvimento da criança, para as especificidades desse desenvolvimento. Mas eles habilitam o professor para atuar até o 5º ano. Nós não temos uma formação de pedagogia para docentes do 6º ao 9º ano. A formação precisa mudar, de maneira geral.
Nós hoje estamos discutindo muito sobre novas competências, o mundo não é mais o mesmo e jamais permanecerá. Estamos num caminho de transformação constante. Então, a formação tem o grande desafio de pensar no desenvolvimento humano dentro dessa sociedade e tentar fazer o exercício de como ela vai estar daqui a alguns anos. Como o professor Mozart Ramos Neves [secretário de Educação de Pernambuco e catedrático do Instituto de Estudos Avançados da USP Ribeirão Preto] sempre diz, não dá para ensinar como se fazia há 40, 30, nem mesmo há 10 anos. Já estamos num mundo diferente. Eu preciso de uma sala de aula com um novo professor para essa nova realidade. Nesse sentido, rever a formação é muito importante, mas eu não quero aqui jogar esse peso só para o professor, porque geralmente é a primeira coisa que se faz. Eu não acho que seja só isso. Temos que pensar em políticas públicas que coloquem a profissão como uma carreira atraente. Temos que valorizar o professor, entendendo que não é apenas uma questão de pagar melhores salários, pois temos muitas outras necessidades que precisam ser atendidas. Esse seria um bom recomeço, em conjunto com a reconfiguração do currículo de formação de professores dessa etapa.
Não há como pensar numa etapa mais adequada para contemplar os anos finais do fundamental se o professor não tiver condições de trabalho que favoreçam esse atendimento. Como nós já dissemos antes, essa fase da pré-adolescência é uma das mais conturbadas da nossa vida. Infelizmente, no modelo que temos hoje, é justamente nessa fase que o professor solta a mão do aluno. E não solta porque quer. É porque ele não dá conta. O professor especialista encontra aquela turma poucas vezes na semana, ele tem uma carga para cumprir, precisa prestar contas do que tem de ser ensinado, muitas vezes num tempo insuficiente, com várias turmas, em várias escolas diferentes para garantir uma renda minimamente decente… Esse é outro ponto que precisa de atenção.
Essa etapa é tão esquecida que, infelizmente, nem mesmo a academia se dedica a estudá-la. No documentário, uma das entrevistadas é a professora Lúcia Sasseron [física e professora associada do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da USP]. Ela conta, por exemplo, que já trabalhou em revista acadêmica e pouquíssimos trabalhos sobre esse segmento eram submetidos para publicação.
Desde sua fundação, em 2011, o Lepes sempre atuou no campo da pesquisa científica e investiu na produção de publicações. Para esse tema, nós decidimos tentar uma abordagem complementar que fosse diferente, que tivesse o poder de engajar as pessoas no debate, de despertar o olhar para esse segmento da educação básica. Por isso escolhemos o documentário. Nós, obviamente, não temos resposta para tudo. Estamos diante de um problema complexo. Se ele pudesse ser solucionado com uma única ideia, uma única política, já teria sido resolvido. A nossa proposta não é essa, mas sim trazer esse tema à consciência. É um grande convite ao início do debate. Esquecidos foi nosso primeiro documentário, mas não será o último. Já temos várias pautas para trazer dentro dessa linguagem.